A escritora Noemi Jaffe, quando perdeu sua mãe, começou a escrever uma longa carta, honesta e forte, sobre a força de sua presença. A saudade da vida, do cheiro, do calor do toque, do som da respiração, dos anos em que ela estava sempre perto. O ônus de quem segue vivendo é a dor e a tentativa de manter em pé o edifício da memória. E de manter a vida em fluxo, um novo contrato de existência sem alguém cuja presença faz imensa falta.
Nesta carta, Noemi relembra a passagem de Lili sobre a terra, uma sobrevivente de Auschwitz que levava um número tatuado no braço. As comidas que fazia, as sobremesas húngaras e raras que ninguém mais fará da mesma maneira. A forma de narrar a vida e as pessoas, de como lidou com a guerra, as guerras. As palavras mais usadas. “Doce, elogio mais lindo do mundo”. Dizia “você é meu doce”, quando falava de amor. A carta virou livro e chama-se “Lili: novela de um luto”.
Um dos momentos mais comoventes do texto é quando a autora relembra uma mensagem da sua mãe que ficou gravada no celular: “queria te dar um beijo, estou com saudades”. O registro dessa voz, armazenado em um aparelho eletrônico, reproduzido por vários, salvo em uma nuvem, transforma-se no som mais precioso do mundo.
Recentemente uma matéria de jornal contou o caso de um rapaz que perdeu a mãe, transformou o áudio de sua risada em tatuagem e escuta sempre que sente saudades, com a ajuda de um aplicativo.
A tecnologia avança e alcança feitos inimagináveis, mas estamos sempre lidando com as mesmas emoções, a condição humana, saudade, amor e dor.
Há uma passagem do livro em que Noemi cita o autor alemão W. G. Sebald para falar sobre o quanto o tempo é a maior e mais aprisionante experiência humana. A vida ocidental está dividida entre passado (o que aconteceu e vira ruína), presente (este acúmulo de obrigações e pressa) e futuro (uma farsa, uma ilusão impalpável). No final das contas o amanhã ainda não existe, como diz o poeta pernambucano Miró.
As lembranças de Noemi passeiam por coisas simples, do dia a dia. O hábito de pechinchar nas lojas, o gosto pelos passeios, as paradas para tomar sorvete, o goulash – prato preferido, as coisas que aconteceram na rotina e que a saudade torna imensas.
O amor mora nos detalhes, talvez seja essa uma das lições principais da morte. Não é no tempo, nas marcas do calendário, mas nas pequenas coisas. É isso que fica. É isso que tentamos guardar escrevendo cartas, transformando áudio em tatuagem, gravando memórias de várias maneiras. Tentamos eternizar a alegria das coisas simples, o jeito de dizer uma palavra, as músicas, os rituais. É dessa matéria que a felicidade constrói o nosso castelo interior, esse que nos abriga e conforta nas horas de saudade. É das alegrias miúdas que precisamos cuidar diariamente.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora.