Poderia ser o roteiro de um filme: dois viajantes partem para conhecer uma cidade futurista. Lá foi construído o edifício mais alto do mundo, que durante a noite serve de tela para a projeção de imagens do fundo do mar, tartarugas gigantes, pinturas abstratas. Diante dele, um balé de águas se apresenta todos os dias. São jatos sincronizados, que sobem e se curvam ao som de canções árabes ou de Lou Reed, uma versão instrumental de “Take a walk on the wild side”. Homens, mulheres e crianças de todos os cantos do planeta estão ali, falando uma miríade de idiomas, deslumbrados pela ideia de um futuro tecnológico onde tudo pode ser previsto e controlado.
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Nessa cidade distópica, repleta de tamareiras por todos os lados, alguém teve a ideia de construir uma ilha artificial em forma de palmeira, essa concepção estética tão familiar. Um viaduto liga o continente à ilha, cheia de prédios, hotéis e casas à beira do Golfo Pérsico, um pedaço do Oceano Índico que importância política e econômica determinantes na história da humanidade.
Essa é Dubai, destino turístico de portas abertas para o mundo, cidade das lojas, marcas e carros luxuosos, símbolo do progresso e da moderna arquitetura. Dubai é uma promessa de vida melhor para milhares de imigrantes indianos, filipinos e paquistaneses, cujo trabalho incessante construiu cada prédio deste lugar único no mundo, onde quase tudo é o maior, o mais alto, o primeiro.
Os dois viajantes andam pela Dubai moderna impressionados com as dimensões das avenidas, os carros nunca vistos antes, a suntuosidade de tudo. Impressionados, sim, mas nada disso desperta a emoção que começou a acontecer quando o mar de vidro deu lugar às construções terracota do souks, os mercados populares, a verdadeira arábia.
As lojinhas dos souks exibem as especiarias que perfumam o Oriente Médio da nossa imaginação ocidental. As cores do açafrão, da cúrcuma, das flores e pétalas, o cheiro da canela e dos incensos, os pós que nem sabemos o que são. Os turcos levam as lâmpadas, os mosaicos de vidros coloridos e iluminados, tudo refletido nos tecidos, no brilho das tâmaras, no verde do zaatar. Os souks são becos, vielas, mistérios, coisas escondidas. Há o ouro e as pérolas.
Os dois viajantes somos eu e meu amor. Dubai entrou no nosso coração quando subimos em um abra, o barquinho tradicional e atravessamos o Dubai Creek. Foi à beira deste canal que nasceu a cidade, quando os homens aprenderam a mergulhar em busca das pérolas que nasciam misteriosamente dentro das ostras.
O abra desliza suavemente e podemos ver Deira, as construções antigas, os métodos de ventilação no deserto, os muros enfeitados com búzios. Essa é Dubai para nós.
A pérola é uma reação natural de defesa da ostra, meu amor me explicou. Qualquer partícula que entre ali – um grão de areia, um parasita – faz com que a ostra lance uma substância nacarada e envolva a ameaça, criando uma forma arredondada e brilhante, um processo que pode durar até três anos. A pérola é o resultado da luta pela sobrevivência.
Nas águas do creek está a Dubai que emociona de verdade, que explica uma parte da história da humanidade, onde se come as melhores tâmaras e se bebe o karak tea, onde negociar os preços das mercadorias é a parte mais divertida, o momento em que nos encontramos como civilização, falando com pessoas que nunca mais veremos.
Os dois viajantes, eu e ele, não esqueceremos jamais o som do adhan, que sai dos minaretes e convida os muçulmanos à oração. Não reconhecemos as palavras, mas entendemos a beleza da fé. A pérola, por exemplo, é a oração da ostra. A ostra é a oração das águas. Cada um reza como sabe.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.