Na sala de aula, à espera dos alunos de dança, Mara Alexandre relembra os movimentos de sua relação com a arte do corpo. “Eu já nasci dançando. Já nasci em movimento”, conta a bailarina. A dança com que nasceu e que a acompanha até hoje é das tradições juninas, das quadrilhas de São João. A família toda gostava e vivia a festa, irmãos mais velhos integravam grupos juninos em seu bairro, o Presidente Kennedy, na periferia de Fortaleza. E, aos 4 anos, ela se iniciou no arraiá; aos 7, já participava de competições com destaque.
“Para muitas pessoas, a dança pode ser uma diversão, uma terapia. Para outras, é um modo de viver. A minha vida é assim: dança”
Que sua arte seja um modo de viver é algo que não se põe em dúvida. Afinal, aos 12 anos, ela sofreu um revés que pôs em dúvida seu futuro, sua forma de viver e, também, sua dança. Uma reação durante um procedimento médico a fez desmaiar, ter enjoos e a passar 3 meses sob observação de especialistas. Ao fim, foi a mãe, acompanhando a filha de perto, que entendeu que ela havia perdido, em definitivo, a audição.
Seguiu-se um período de isolamento, de tristeza e solidão. Mas Mara não era do tipo que se perderia nesse caminho. Despertou para a necessidade de enfrentar todos os obstáculos: das novas limitações práticas da vida ao preconceito, falta de empatia e de paciência de pessoas próximas. Aos poucos, Mara Alexandre aprendeu a ouvir de outras formas. Lia a coreografia dos lábios e adivinhava o som e as palavras das pessoas. Foi assim que seguiu com os estudos e, num mundo muitas vezes avesso à inclusão, conquistou seus espaços, como mulher, como profissional, como artista.
“O meu ouvir é através do olhar e da vibração”, revela. Ela detalha como sua nova forma de ouvir permitiu que a dança seguisse presente em sua vida. “Eu me guiava muito pela zabumba, que tem o som mais forte e grave. Nós surdos ouvimos através da vibração no chão e no corpo”.
A imaginação recriou os sons. Mara, que já ouviu convencionalmente, não lembra como soam os pássaros ou a própria voz. “Quando falo, dizem que pareço uma estrangeira”, observa.
“Vou identificando os sons na minha forma de ouvir, na minha condição de surda. Ouço através do olhar e das vibrações. Depois que perdi a audição, me perguntei: como vou dançar quadrilha? E entendi que iria dançar para ver o mundo, para sentir o mundo”.
“A dança transformou completamente a minha vida. E acho importante levar o exemplo para outras pessoas surdas. Somos capazes. Não temos limites”, afirma com entusiasmo.
A história de vida de Mara Alexandre é marcada pela perseverança. O sonho de viver da dança não convencia a família, mesmo que a menina e, depois, a adolescente se destacasse nas apresentações da quadrilha Puxando Fogo.
Ela acabou encontrando um emprego no comércio, que dificultava sua dedicação à arte que a apaixonava. Por quatro anos, dividiu-se entre um trabalho que não gostava e seu sonho. Ganhou um concurso estadual de dança de salão e, diante da possibilidade de uma conquista nacional, bancou uma decisão firme: a partir dali se dedicaria, integralmente, à dança e às suas descobertas.
O passo foi acertado porque Mara Alexandre o fez dar certo. Da tradição junina, nunca se afastou. Há quase duas décadas é rainha na Ceará Junino, uma das mais competitivas no circuito cearense de quadrilhas. Coleciona troféus e um reconhecimento que se traduz no desejo de outros aprenderem com ela.
Leva seu nome um método, criador por ela, que tem ajudado rainhas e quadrilheiros. Mara Alexandre propõe que se vá além da coreografia, do passo ensaiado, e se entenda o que exatamente a dança deseja expressar. Como uma atriz, ela constrói o personagem e dá vida ele, reservando espaço para o improviso, de quem sente o momento, numa tradição marcada pelo rigor coregráfico.
Mara é uma apaixonada pelas descobertas.
Estudou música, para conhecer os instrumentos e, em sua forma de ouvir, recriar os sons e ritmos que eles produzem. Fez um curso técnico em Dança, no Instituto Dragão do Mar, e graduação em Dança, pela Universidade Federal do Ceará. Dedicou-se a aprender e, a partir de sua condição, contribui para que outros conheçam uma nova forma de ver e sentir a arte dos movimentos do corpo.
Em meio aos ensaios, intensificadíssimos, para o São João, Mara Alexandre dança e ensina a dança. Em cursos, lives e, também, num centro estadual que atende a população idosa. Ensina a todos: tanto a quem não tem perda auditiva alguma, como a outros surdos.
Uns aprendem com os outros, não apenas a fazer os corpos moverem-se com graça e ritmo. Aprendem sobre a diversidade da diferença, a respeito das dificuldades que ainda acompanham a vida das pessoas com deficiência, por indiferença ou insensibilidade alheia, e a conhecer potencial onde muitos só enxergam limitações.
“Não podemos desistir dos nossos sonhos. Apesar das adversidades, nós somos muito capazes. Falo isso para todas as pessoas com deficiência. Eu, como artista da dança, surda, tenho muito orgulho de fazer a diferença na vida das pessoas”
“Temos que ocupar nossos lugares, porque somos pessoas incríveis e temos muito o que ensinar a todas as outras. Nós surdos somos diferentes e podemos fazer a diferença”
Ensina a artista que inventou uma nova forma de ouvir e de transformar a vida em dança.