Pinóquio, Maquiavel e Ariely: a jornada da mentira na sociedade do consumo

Em marketing, ser melhor não necessariamente garante que você tenha um produto ótimo. Basta ser melhor que o mercado vigente.

Foto: Marketing/ SVM

Se você estiver em um mercado maduro e altamente competitivo, não será um ótimo produto que colocará você como líder. Ele até pode, mas não é o suficiente. Vamos lembrar da Lei da Mente, defendida e muito bem explicada pelo famoso consultor de marketing Al Ries, onde é melhor ser o primeiro do que ser o melhor. Primeiro onde?

Primeiro na mente do consumidor. Quer um exemplo? Você realmente acha que, na sua cidade, a melhor esfiha de todas é a do Habib’s? Então, ela é acessível, você sabe o tipo de qualidade que vai receber e o preço é muito competitivo. Aí vem seu amigo chato e sabidão dizendo: “qualquer um consegue fazer uma esfiha melhor que a do Habibs”.

O amigo é um consumidor normal, não está errado em sua análise, mas não tem a cabeça do marketing. Por mais que seja fácil um concorrente fazer uma bem melhor, dificilmente ele terá facilidade de entrar nesse mercado sem investir milhões em comunicação para ter uma marca mais bem posicionada na mente das pessoas que a do concorrente líder.

No final das contas, é como você constrói a sua marca e o gerou de reputação que vale. Habib’s não enganou ninguém. A esfiha é aquilo mesmo e, pelo preço vendido, o mercado tem adorado o custo-benefício. Bem-vindo ao mundo da oferta e da procura.
 

Isso serve para tudo? 

Para tudo, eu não sei, mas pra muita coisa, sim. Se você é feio, a situação aqui será uma questão de referência ou de mercado vigente. Se você busca conquistar a paquera do Brad Pitt, recomendo que você seja muito bom em alguma outra coisa, se não você não vai ter apenas a garantia do “não” da gata, vai também ganhar a humilhação. 
 
E faz o quê? Arruma um amigo bem feio e bota ele do teu lado. Automaticamente, você vai parecer um pouco mais bonito. Vai vencer o Brad Pitt? Se a gata for cega, talvez. Mas a questão aqui volta a ser a importância de se construir predicados para situações em que você consiga, em alguma análise, ser o melhor.

Estamos agora falando da Lei da Categoria. Se você não é o melhor naquilo que faz, seja o melhor em algo específico. Por exemplo, você tem uma pizzaria e não tem a melhor pizza, mas é aquela que entrega mais rápido. Você não é lindo que nem o Brad Pitt, mas é mais inteligente. Você não tem o produto mais gostoso, mas tem um que é mais saudável.

No momento em que buscamos promessas que vão além da análise básica, a verdade de como o produto será interpretado para ser o primeiro na mente do consumidor fica perto do infinito.

Um produto pode ser o melhor apenas por ter um design legal, por ser o mais barato, por ser o mais acessível, por ser o que tem mais cores, por ser o mais compacto, por ser o mais seguro, mais resistente, mais doce, mais light, mais natural, mais tradicional, mais inovador, mais preocupado com o meio ambiente, mais... mais.... E por aí vai.

Na busca por conseguir entrar em categorias, chegamos a situações extremas como a do Celta Cross. Alguém acha de verdade que o antigo Celtinha era capaz de subir algum barranco cheio de lama facilmente só por ter uns para-choques metidos a 4x4? Nasce aí a jornada da mentira, onde todos sabemos que não é verdade, mas aceitamos de forma natural.

Maquiavel e a mentira

Em seu livro O Príncipe, Nicolau Maquiavel cunhou a frase “Governar é fazer crer”. Por mais que ele tenha colocado a sentença no ponto de vista político, a questão central se aplica a muitos horizontes. Mentir também é uma construção para se desenvolver uma nova verdade. Estranho, né? Nem tanto.

É uma técnica usada por muitos e que dá muito certo quando bem executada. Na Alemanha nazista, o estrategista de comunicação era Josef Goebbels e dele nasceu a frase "Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”. 

O fato é que a mentira faz parte do governar de tudo, e Maquiavel sabia perfeitamente o poder que tal método poderia alcançar.

 
Bom, mas essa coluna é de mercado e o importante é saber que muitos produtos vendem verdades pouco prováveis. Só que existe uma forma de mentir que parece ser do bem. Quer um exemplo de mentira contada de forma simpática?

O que faz o brasileiro comprar peru no Natal. A gente passa o ano inteiro e nem lembra do peru. Ele não é uma ave culturalmente presente em nossos hábitos, mas foi construída uma verdade de que o consumo do pobre peru se faz coerente na noite de Natal. Essa ave tem alto valor cultural nos EUA, apenas importamos a ave que representa a fartura para eles, talvez o pão ou o peixe fossem mais coerentes com nossos hábitos. Essa é uma mentira simples que gerou um novo mercado sazonal. Só que por ser algo, em tese, sem muitos abalos, a gente aceita.

Isso acontece no hambúrguer que na foto é diferente do real; no suplemento natural que está lotado de conservantes; no produto light que, na verdade, não tem menos gordura, mas tem menos proteínas.

Em busca de gerar novas receitas, hoje compramos leite em pó, mas podemos estar adquirindo, na verdade, um composto lácteo que pode ter apenas 51% de leite na real. Você compra batata Pringles, mas ela tem apenas 42% de batata e, por isso, segundo o Supremo Tribunal da Grã-Bretanha, em 2008, a Pringles precisou ser classificada como um produto "crocante de batata” e, assim, ela foi colocada na seção de biscoitos ou bolos.

Nada contra a batata, eu adoro, apenas uma compreensão de um hábito de consumir algo que não é. Qual o risco? Na busca pelo alimento saudável estamos a cada ano adquirindo mais produtos ultra processados, vendidos como suplementos e que podem gerar sérios danos nutricionais e à saúde.
 

São muitos exemplos que todos nós convivemos e achamos natural. O motivo de aceitarmos isso vai muito de como destruímos a culpa em nossa mente em troca de uma recompensa que parece nos fazer bem.

Mentir pode fazer o bem?

O psicólogo e especialista em economia comportamental Dan Ariely desenvolveu um teste para analisar como a mentira pode ser favorável ao cérebro. Para entender mais do autor, é preciso saber que ele se caracteriza por, com ajuda de seus alunos, levantar e testar inúmeras hipóteses comportamentais por meio de métodos pitorescos, mas extremamente científicos e mensuráveis.

No experimento sobre a mentira como objeto de estudo, os resultados foram formados com o uso de um detector de mentiras. A princípio, o detector consegue notificar a mentira quando o interesse é egoísta. Acontece que, quando a mentira tem uma resultante de fazer o bem, o detector não consegue apurar mais a tensão mental do ato de mentir.

No teste aplicado, a resposta numérica de um dado quando lançado sobre a mesa (aqueles dados de tabuleiro mesmo) diria quantos dólares cada um receberia se dissesse a verdade. Se o dado desse 3, o participante receberia 3 dólares. Se ele mentisse, o detector acusaria e não existiria a premiação. Ocorreu que, em um dado momento, foi informado que o valor ganho seria revertido para a caridade, a partir de então, os participantes que queriam ajudar mais assumiam seus papeis de Pinóquio e mentiam, elevando o valor mostrado pelo dado, pois seria por uma boa causa.

E o detector? Bom, o fato de a mentira ter um fim para o bem fazia com que o estresse mental de mentir não acontecesse e, por fim, não existisse uma detecção por parte do equipamento. A boa ação tornava a mentira boa.
 
Pode parecer bonitinho, só que, se ampliarmos a visão de que os bons princípios que moram dentro de cada indivíduo são diferentes, poderemos ter sensações de bem-estar ao ajudar bolhas maiores ou menores. Dependendo da bolha, o ajudar pode ser para a bolha egoísta dos seus amigos e não para uma bolha social realmente necessitada. Existe um risco aí na forma de enxergar a solidariedade. 

As marcas, a mentira do bem e o ESG

Assim fazem empresas no mundo ESG (Enviromental, Social and Governamental). Adoram vender a percepção de que suas empresas são donas de um diferencial ligado à sustentabilidade, ao cuidado com comunidades ou que cuidam do lixo e do meio ambiente. Será?

Assim como no experimento de Dan Ariely, vender essa percepção cria uma sensação de boa vontade tão grande que a gente compra o produto e mente para sí mesmo como se aquele ato fosse o suficiente para parecermos pessoas preocupadas com o mundo.
 
Pensar nessa hipótese nos leva a entender que aprender cálculos, línguas e ciências são essenciais para crescer, só que crescer e evoluir são situações bem distintas. Aprender ética, cidadania e filosofia podem ajudar a compreender os princípios que farão o bem para uma comunidade maior que a própria bolha.

Quando avaliamos como indústrias utilizam imagens lindas, promessas acompanhadas de bebezinhos - fofinhos, anjinhos, bichinhos ou promessas muito sociais e ambientais - percebemos como essas indústrias ajudaram a criar o império do consumo de nossa sociedade.
 
A mentira das marcas no ESG esconde uma demanda premente para a sustentação do próprio mercado. Um bom exemplo está na água. Cuidar dela é realmente vital e, sem uso consciente não existe como evitar a escassez. Quando a Ambev aplica o Movimento CYAN, onde se busca gastar o mínimo de água para produzir um litro de cerveja, pois melhora sua gestão de custos, garante competitividade no seu mercado, evita uma escassez grave e ainda cria uma ação de bom valor para a sua marca. 

Ela entende a dor que terá lá na frente se não o fizer. Nesse caso, o bonitinho tem verdade, pois melhora para o bolso e para o mundo ao mesmo tempo.

Empresas necessitam compreender que a escassez fará parte do seu negócio e o ESG não é apenas para inglês ver. Tem que sair do papel e do apenas lindinho, tem que ter metas e tornar o consumo algo inteligente.

O seu negócio atualmente usa insumos que estarão escassos nos próximos anos? Você tem feito algo? Já foi mapeado? Existe um comitê de crise? Ou apenas o setor de marketing está sabendo para poder entrar na onda? ESG não é o futuro, é o presente. Cabe as empresas e aos consumidores compreenderem a real importância.
 
Por fim, a mentira acontece com carinha de coisa linda, e levamos nossa vida acompanhados de troféus de consumo que não nos fazem bem nem em saúde, nem em cultura e nem em preservação. Em nossa preguiça social, no fim, nós mesmo somos Pinóquios de nossa jornada no mundo do consumo.