Transformando dor em beleza e marginalização em luta

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Acabamos de viver o carnaval, a maior festa do país, aquela que nos dá identidade e visibilidade perante o mundo. Uma festa que, sendo originalmente europeia, elitista e branca, foi completamente apropriada e ressignificada pela população negra e afrodescendente. Sendo a esmagadora maioria da população brasileira, no fim do século XIX e início do século XX, os pretos e pretas encontraram na festa de Momo uma oportunidade de fuga de seu cotidiano de marginalização, miséria e opressão, de dar sentido a uma vida marcada pelo racismo cotidiano, pelo preconceito diário, pela dificuldade de se construir autoestima e uma identidade que não fosse degradada e subalternizada.

Os pretos sempre encontraram em seus batuques, em seus cantos e em suas danças, bem como em seus rituais religiosos, quando muito tolerados pelos senhores de escravizados, para evitar que houvessem revoltas nas senzalas, válvulas de escape subjetivas e existências para uma vida de carências, violências e humilhações. Preservar, a todo custo, fragmentos das suas culturas, das suas línguas, de suas crenças, usando, muitas vezes, da clandestinidade, do disfarce, do mascaramento, daquilo que ficou conhecido como sincretismo, era a única forma de amenizarem a brutal desterritorialização, provocada não só pelo sequestro e deportação de suas terras de nascimento, mas pela inserção em uma nova ordem social marcada pela escravização, uma inserção que implicava completa mudança de status social, de situação e condição existencial.

Como náufragos salvados de uma travessia oceânica que, para muitos, significava não apenas a morte física, mas a morte da persona que encarnavam em suas sociedades, se agarraram nos destroços de suas vivências, fizeram de suas memórias, de suas lembranças, inclusive aquelas que traziam nas carnes, que faziam parte dos corpos que agora se viam obrigados a reconstruir, formas de sobrevivência, de resiliência diante da catástrofe pessoal e coletiva que se abateu sobre milhões de africanos da diáspora.

Do grito de dor provocada pelos açoites, pelas agressões, pelos instrumentos de aprisionamento e tortura, pelos estupros, pelas sevícias de toda ordem, os pretos e pretas fizeram canto, fizeram canções que expressavam todo sofrimento que da pele, das carnes, se prolongavam nas almas. Do lamento pelos filhos e filhas perdidos, separados, ausentes, pelos amores desterrados, pelos parentes e amigos mortos na tortura, pelo companheiro castrado, emasculado, enforcado em uma árvore, surgiu uma forma de cantar, surgiu uma forma de clamar aos deuses, ao Deus dos brancos, de suplicar misericórdia e amor. Como diz lindamente os poetas Caetano Veloso e Gilberto Gil: “A tristeza é senhora, desde que o samba é samba é assim/A lágrima clara sobre a pele escura... Cantando eu mando a tristeza embora”.

Assim nasceu o samba, que alegra a todos durante o carnaval, que ainda hoje faz a alegria e dá exuberância e sensualidade, dá nobreza e dignidade a corpos de negros e negras que, no dia a dia, têm que conviver com o racismo mais abjeto, com as posições mais subalternas no mercado de trabalho, sofrendo humilhações diárias de patrões e patroas racistas, têm que conviver com o olhar de suspeita sempre que entram em algum lugar, quando não com o olhar de repulsa e estranhamento.

Esses corpos que se vestem de reis e rainhas no carnaval, que se transformam em pura beleza e fantasia, que atraem os olhares de desejo, que são focalizados pelas câmeras da Tv em todo seu esplendor, passado o carnaval têm que retornar para a realidade violenta e precária das favelas, têm que voltar para seus postos de trabalho, para exercerem, quase sempre, posições subalternas, trabalhos braçais, mal pagos e submetidos a relações de trabalho marcadas pela informalidade e a exploração mais desabrida, têm que escapar, todos os dias das balas, batidas, baculejos, agressões verbais, humilhações, das botinas policiais.

O culto a seus deuses deu força a essa gente para resistir, para aguentar, para afirmar a própria humanidade diante de uma ordem que reservava para eles o lugar de coisa, de mercadorias, de bens móveis, de peças. Essa gente preta precisa, até hoje, afirmar, diuturnamente, sua condição de seres humanos, que gozam dos mesmos direitos de qualquer outro ser da mesma espécie. Todos os dias é preciso reagir ao fato de que são vistos ainda, muitas vezes, como carnes baratas no mercado do trabalho, do sexo, da criminalidade. As mãos negras, que construíram esse país, que fizeram ele ser o que ele é, afirmam sua humanidade a cada vez que são capazes de produzir beleza, capazes de produzir arte, que são capazes de fantasias e de alegorias.

Para os negros e negras brasileiros, o carnaval nunca foi adereço, o samba nunca foi mera diversão, o carnaval para essa gente é endereço, foi uma das formas de que essa gente fosse alguém e encontrassem um lugar para si numa ordem social que estava para eles fechada, relegando-os à marginalização, ao esquecimento, sonhando, muitas vezes, com seu desaparecimento, deportação ou extermínio por doenças e fome. Para essa gente o samba sempre foi direção, prumo, rumo, foi aquilo que deu sentido e significado a vidas consideradas, por muitos, de segunda categoria, dispensáveis, descartáveis, até incômodas, quando não estavam servindo, sendo serviçal ou estando a serviço de alguém considerado branco, doutor, senhor, senhorzinho, patroa, patrão, autoridade.

Cada vez que uma escola-de-samba desfila nesse país, cada vez que o samba ecoa, a cada vez que o carnaval ser realiza, é a afirmação da presença negra entre nós, é a afirmação

não só da humanidade dos pretos e pretas, mas da grandeza e genialidade da contribuição dos afrodescendentes para esse país. O carnaval é a própria expressão da generosidade negra, pois os africanos e seus descendentes, transformaram uma festa elitista e excludente, numa das festas mais democráticas do país, mais aberta a todas as formas de diferenças e diversidades, uma festa de rua, de espaços públicos, uma festa baseada na formação de coletivos, de grupos, de sociedades, de blocos, de cortejos, de rodas, de agremiações.

Da mesma forma que os negros e negras construíram em torno do culto aos mortos, do respeito aos espíritos dos ancestrais, crenças trazidas de África, suas primeiras instituições, da mesma forma que através do culto aos seus deuses e de suas simbiose com o culto a santos católicos os africanos e seus descendentes foram construindo nas fimbrias da sociedade escravista espaços de sociabilidade e solidariedade, foi, muitas vezes, a partir desses locais que as instituições carnavalescas surgiram e permitiram que negros e negras libertos ou nascidos livres construíssem espaços de convivência e ajuda mútua, numa sociedade que os subalternizava e que, até espacialmente, os atiravam para as periferias das cidades ou os mantinham isolados no campo.

Cada vez que os maracatus rurais, compostos em sua maioria por homens e mulheres negras, que se dedicam ao penoso trabalho nos canaviais, cada vez que aqueles homens e mulheres de mãos calejadas, deformadas, de corpos empenados e maltratados pelo trabalho brutal do corte da cana, se vestem com seus belos paramentos, quando adentram as cidades cantado, dançando, manejando suas lanças, agitando suas cabeleiras de cores, não é só a resistência negra, sua capacidade de resiliência que ali se afirma, é o desfile da vitória de grande parte de nossas gentes que, se fosse pela vontade de grande parte de nossas elites, deveria ter desaparecido, morrido, em algum momento de nossa história. Por isso o carnaval está longe de ser uma mera festa, banal e alienada, como muitos da chamada esquerda do país, que sempre compreenderam pouco ou gostaram pouco do verdadeiro povo brasileiro, da verdadeira face da classe trabalhadora no país, sempre pensaram.

O preconceito de classe média contra o carnaval foi responsável, inclusive, que ele não fosse um tema considerado digno de estudo, por muito tempo, numa universidade brasileira dominada por um marxismo europeizado, eurocêntrico, incapaz de olhar de lado e ver quem realmente era e como vivia, do que gostava o operariado brasileiro. O carnaval é e sempre foi uma manifestação política, mesmo quando uma escola-de-samba como a Portela, ganhava o carnaval todos os anos cantando os temas que interessavam ao Estado Novo getulhista, ou quando a Beija-Flor faz um carnaval financiado pela Prefeitura de Maceió e põe o deputado Arthur Lira para desfilar, dando

com os burros n’água. O seja, da mesma forma que o carnaval pode ser utilizado politicamente por quem está no poder e o financia, ele, somente por sua existência, por ser um momento de afirmação da criatividade, inventividade, capacidade de organização, de gestão, de direção, de realização da parcela afrodescendente da sociedade brasileira, dos pretos e pretas das favelas, das periferias, dos mangues, dos quilombos, dos subúrbios, dos morros, já tem um sentido político fundamental, por ser afirmação de humanidade, de dignidade, de resistência e resiliência dos pobres e pretos desse país.

Mesmo que o branco, o rico, a socialite, o ator e atriz global, a modelo, o músico classe média, o artista erudito, o político interessado em aparecer, em parecer popular, possam estar todos lá, tirando a sua casquinha da festa, eles estão ali porque foram a gente do morro, da periferia, foram os pretos que construíram aquele espetáculo, eles são ali figuras secundárias. Diante da beleza escultórica de uma negra ou de um negro passista, destaque, folião, a pança do presidente da Câmara cai é no ridículo, ainda mais que, se ensaiar um passo, é capaz de se estabacar no asfalto. Quando um presidente da República quis se aproveitar da festa, terminou abduzido pela genitália desnuda de uma foliã.

O carnaval é radicalmente político, porque é da própria carnavalização o exercício da critica, da caricatura, o carnaval sempre foi a oportunidade, desde o período medieval, na Europa, do exercício da contestação a ordem social, de inversão das hierarquias sociais.

O carnavalizar significa, muitas vezes, colocar a ordem do mundo de ponta-cabeça, praticar a inversão, a transgressão, a subversão dos códigos. Mesmo num desfile de escolas-de-samba transformado em um grande espetáculo midiático, comercial, turístico, empresarial, que já é em si mesmo um signo da potência daquilo que os pretos e pretas foram capazes de criar (não é mera coincidência que a Unidos do Viradouro ganhou o carnaval carioca falando da força da mulher negra, da importância das mulheres negras para a preservação de traços culturais e práticas cultuais trazidas da África, como os voduns, o culto jeje, o que também foi cantado no enredo da Portela), se dedica a fazer a crítica social, a crítica política, que tantas vezes levou escolas como a Mangueira, a Beija-Flor, a vitórias (os recentes enredos dessas duas escolas fizeram incisivas criticas, inclusive, a como a história do Brasil é contada, de forma a menosprezar ou invisibilizar a contribuição dos africanos e descendentes).

A Marques de Sapucaí tem sido palco para as denuncias mais contundentes acerca de varias temáticas como a questão ambiental (que aparecia no enredo da Vila Isabel), o genocídio dos indígenas (trazido pelo Salgueiro), a marginalização dos pretos e pobres (a Mangueira ao cantar a trajetória da artista negra Alcione não deixou de lembrar de onde ela veio e como sua família ascendeu socialmente

através da musica, da produção generosa de beleza). A escola-de-samba Vai-Vai, uma das escolas com maior participação de afrodescendentes de São Paulo, virou motivo de polêmica ao denunciar a violência policial contra os negros no país. O curioso é que, enquanto o sindicatos dos policiais paulistas protestava de forma indignada e a extrema-direita exigia que a escola fosse punida com a perda de patrocínio, policiais da Brigada Militar do Rio Grande do Sul, chamada por um motoboy negro, que havia sido atacado com uma faca por um homem branco, foi algemado e preso, enquanto o agressor foi acompanhado até em casa para vestir uma camisa, antes de ser levado até uma delegacia.

Num país como esse, cada vez que os negros demonstram que foram capazes de transformar suas dores em beleza e a marginalização em luta cotidiana por sobreviver, por continuar vivos, cada vez que fica patente tudo o que eles foram capazes de inventar, de criar, no interior de uma sociedade em que eles eram vistos como estorvos ou como serviçais, nas frestas e brechas de uma sociedade racista e excludente, é um ato político de extrema importância, por isso incomoda há muitos e outros tantos tentam dele se aproveitar de várias maneiras.



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