Ouremos! A rapinagem como elemento estrutural da sociedade brasileira

Legenda: Milton Ribeiro pediu demissão do cargo de ministro da Educação na segunda-feira (28)
Foto: PR

As redes sociais foram inundadas, nos últimos dias, por memes que abordam com humor e sarcasmo, o mais recente escândalo de assalto aos cofres públicos, através da constituição de gabinetes paralelos e da pilhagem do orçamento federal, ocorrido no governo de Jair Bolsonaro, que quando candidato prometia “acabar com a farra”: o vazamento de áudios em que se ouvia a voz do Ministro da Educação, o pastor presbiteriano, Milton Ribeiro, afirmando privilegiar, na destinação de verbas do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FUNDEB), aqueles municípios que eram indicados pelos pastores Gilmar Santos e Airton Moura (pertencem ao Ministério Cristo para Todos, uma das ramificações da Assembleia de Deus, em Goiânia e Belém) , que não fazem parte da estrutura formal do Ministério, o que configuraria os crimes de corrupção e tráfico de influência.

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Um dos memes mais geniais fazia referência a denúncia - que se seguiu ao vazamento do áudio e a reportagem denúncia do jornal O Estado de São Paulo -, feita pelo prefeito de Luís Domingues, município maranhense, Gilberto Braga, de que o pastor evangélico Airton Moura, em almoço com ele e outros prefeitos, logo após serem recebidos pelo Ministro Milton Ribeiro, falara abertamente que só para que protocolassem o pedido de cada prefeitura junto ao MEC, deveria ser paga a quantia de 15 mil reais, além de ter pedido particularmente a ele, prefeito de um município onde há garimpo, um quilo de ouro (que custa cerca de 304 mil reais), quando sua demanda fosse atendida.

O meme trazia o pastor e teólogo, o ex-reitor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, o atual Ministro da Educação, iniciando uma oração, com a expressão “Ouremos!” e numa outra imagem lateral o pastor Gilmar Santos repetindo famosa frase bíblica, só que com sua ordem e conteúdo modificados: “O pastor é meu senhor, ouro não me faltará”.

O presidente da República, em sua live semanal, saiu em defesa do Ministro-pastor, dizendo que poria “sua cara no fogo” por ele, o que não causa espanto já que no áudio que chegou ao conhecimento público, o dono de gráfica para impressão de Bíblias, agora Ministro, disse que a ordem para que privilegiasse as demandas intermediadas pelos dois pastores fora do próprio Jair Bolsonaro.

O que temos, no momento, é um governo que exacerba e encarna, como nenhum outro, um dos traços estruturantes da sociedade brasileira: a rapinagem das riquezas e recursos públicos, de tudo aquilo que se constitui em patrimônio comum da sociedade brasileira. Nossa sociedade foi formada no bojo da rapinagem da dominação colonial. Nossas elites são herdeiras de fortunas e patrimônios materiais, muitas deles adquiridos através da conquista armada, da invasão, da pilhagem das comunidades de povos originários. Nossa sociedade se estruturou através do trabalho dos africanos escravizados, força trabalho aqui chegada como resultado da rapinagem praticada pelos portugueses, e outros povos europeus, em África.

A possessão colonial implicava e legitimava a rapina, o saque, a apreensão, o roubo, o esbulho, a desapropriação, a posse, de terras, de gentes, de todo tipo de riqueza, inclusive do patrimônio cultural e artístico dos povos derrotados ou subordinados.

Era pressuposto da colonização a legitimidade de todas as práticas de destituição do outro, do colonizado, do derrotado na guerra de conquista, de seus haveres e de seu território, como indenização pelo gasto com a tomada de posse ou mesmo como agradecimento por estarem trazendo a civilização.

Não deveria nos causar nenhum espanto a rapinagem dos cofres públicos, dos recursos da educação, em nome da disseminação do Evangelho, da “palavra de Deus” (prefeitos vieram a público denunciar que a dupla de pastores havia solicitado também a compra de Bíblias e recursos para a construção de igrejas em suas cidades), pois essa foi a base de nossa colonização. Em nome do salvamento das almas pagãs, em nome de trazerem a palavra de Deus para as almas entregues ao governo de Satã, em nome de apresentarem Cristo aos gentios, os padres jesuítas e, posteriormente, várias ordens católicas participaram e legitimaram a rapinagem colonial, inclusive de vidas humanas para a escravização. Deus há muito serve de pretexto, na terra brasilis, para o enriquecimento, a acumulação de fortunas, para a espoliação, inclusive do trabalho alheio, por parte daqueles que se dizem pastores e profetas de Deus.

O colonizador branco, europeu, chegou nessas terras em busca de fazer fortuna, fácil e rápida. Não vieram para aqui se estabelecer definitivamente, embora muitos com o passar do tempo e dada as circunstâncias tiveram que por aqui ficarem. O intelectual paulista, Paulo Prado, em sua obra Retrato do Brasil, coloca a cobiça como um dos sentimentos, uma das disposições subjetivas, que estruturou a sociedade brasileira. A falta de identidade de nossas elites com sua própria terra vem daí. Nossas elites parecem estar

sempre de passagem, visando retirar do país o que podem o mais rápido possível e depois irem embora para as terras do hemisfério norte, seu sonho de consumo. A predação da natureza, de nossas riquezas, das finanças públicas, da própria população, tomada como fonte do trabalho serviçal e servil, é o que caracteriza as elites brasileiras e mesmo nossas camadas populares, premidas pelo imediatismo da ação para sobreviver, premidas pela miséria.

A nossa sociedade se caracteriza pela incapacidade de considerar aquilo que é público como algo que pertence a todos e que por todos deve ser zelado, cuidado, preservado. No Brasil o público é visto como aquilo que não pertence a ninguém ou que pertence ao governo e, por isso, pode ser depredado, apossado privadamente, predado. A destruição da Amazônia, tão incentivada por esse governo e pelas elites rurais que o apoia, o envenenamento sistemático de rios e solos promovido pelo agronegócio, que contou com a liberação do inimaginável número de mais de quinhentos agrotóxicos no governo atual, o incentivo, por falta de repressão, do garimpo, inclusive com a lei aprovada pela Câmara dos Deputados, da permissão de minerar em terras indígenas, a busca de transformar reservas naturais brasileiras em destinos turísticos com a construção de cassinos, resorts e hotéis destinados a jogatina (talvez isso explique a aparente extemporânea tentativa do governo federal de retirar a ilha de Fernando de Noronha da administração de Pernambuco), são apenas a face atual desse traço estrutural da sociedade brasileira, uma sociedade em que tudo que é público, tudo aquilo que deveria ser visto e tratado como patrimônio coletivo é motivo de ações de rapinagem, de apropriação privada, inclusive com o uso da violência, como desde o período colonial se constituiu grande parte da propriedade da terra e do solo urbano, no país. Um país que conta, agora, até com um orçamento secreto, administrado por um Congresso Nacional, que se apossa dos recursos públicos e faz deles moeda de troca política e fonte de financiamento de iniciativas empresariais privadas, muitas vezes dos próprios parlamentares e de seus parentes.

Faz parte do senso comum, inclusive entre as camadas populares, que o dinheiro público deve e pode ser usado para fins particulares. Quando um eleitor se aproxima de um candidato e lhe pede que realize, com recursos do orçamento, uma ação que só o beneficia pessoalmente, ao invés de demandar uma obra que atenderá a coletividade, é essa lógica da rapinagem que está em funcionamento. Se os eleitores voltam a votar em candidatos que “roubam mais fazem” é porque, no fundo, consideram natural que o cargo público seja usado em benefício próprio. Muitos populares afirmam que se estivessem no lugar do político corrupto fariam o mesmo que ele. Se alguém chega a um cargo público e não beneficia com cargos, salários, verbas e outras modalidades de prebendas seus parentes, correligionários, cabos eleitorais, munícipes, é até admoestado e mal visto.

Embora a corrupção seja o tema moralista que serviu de base para todos os atentados a ordem democrática no Brasil, que serviu de bandeira para que membros do Judiciário se beneficiassem privadamente e prejudicassem a sociedade como um todo, ela é estruturante da sociedade brasileira. A Operação Lava Jato e o governo Jair Bolsonaro deixam claro que devemos ter cuidado com paladinos da moralidade num país em que o corrupto e o corruptor são os primeiros a discursarem contra a corrupção, ao mesmo tempo, que fazem da rapinagem meio de ascensão social e de conquista de objetivos políticos.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.



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