Com a Covid-19 à solta por aí, não é hora de ter uma 'DR' com o mundo  

Até a ciência diz que a melhor e mais rápida saída para a crise de saúde pública mundial passa pelo uso da razão e o exercício da empatia  

Nem bem chegamos ao fim da segunda semana sob ataque de uma pandemia, e os nervos da maioria já estão em estado crítico. Tenho certeza de que as explosões de raiva, a tensão e a disposição para reclamar e bater boca não são exclusivamente minhas.

O balanço pessoal – e acredito que ele também siga a regra - é de que perdi bem mais tomando esse caminho do que ganhei. Em compensação, o abrigo da racionalidade e da empatia rende momentos mais proveitosos.  

Apesar de ser óbvio e incontestável, muitas vezes preferimos ignorar o fato de que ninguém esperava pela pandemia. É a hora em que exigimos que tudo esteja pronto; que, por exemplo, do dia para a noite, haja álcool em gel e máscaras disponíveis nas farmácias, mesmo que a demanda por esses produtos na crise seja, Deus sabe quanto, maior.

E não para por aí: é seu delivery que demora, o atendente da farmácia que parece desligado do mundo, o caixa do supermercado que não dá uma mão para empacotar tudo, o sujeito da T.I. que não resolveu seu problema para que você possa fazer home office...  

A Covid-19, de repente, se converte num ataque pessoal. Funciona como uma conspiração, cheia de fios invisíveis, prontos para atravessar suas pernas e fazer você cair de cheio.

O “vírus chinês” ou o desastrado “ataque biológico dos EUA” faz parte de uma "rede de sabotagem", que inclui prestadores de serviço diversos, seus colegas de trabalho, seus amigos e famílias. E o alvo é você. Sim, estou exagerando, mas a sensação é mesmo tão diferente assim?  

Se você para um minuto e adota uma postura mais analítica, não vai ser difícil ver no outro muito do que você passa: a sobrecarga de preocupações, o medo, a incerteza e a frustração do mundo ter entrado em guerra sem que você possa ter se preparado para se refugiar num bunker.  

Essa maneira de sentir e agir conspiratória lembra o que David Foster Wallace escreveu:

“É a forma automática de como eu vivo as partes chatas, frustrantes e lotadas da vida adulta quando eu estou operando na crença automática, inconsciente de que eu sou o centro do mundo, e que minhas necessidades imediatas e sentimentos são o que deve determinar as prioridades do mundo”.  

Neste texto - “Isto é água” -, Foster Wallace é assertivo: trata-se de uma escolha. Não é um apelo para que você se agarre a algo de outro mundo, mais ao que tem entre as orelhas.

“Se você tem certeza automática de que sabe o que a realidade é, e você está operando na sua configuração padrão, então você, como eu, provavelmente não vai considerar possibilidades que não são irritantes ou miseráveis. Mas se você realmente aprender como prestar atenção, então você saberá que existem outras opções”.

Não, não é o caso de ser bonzinho, de abraçar árvores ou dizer que gentileza gera gentileza. Mas o de evitar conflitos pelo que, acredite, não terá solução imediata nestes dias de exceção. Piorar a vida do outro não vai melhorar a sua, nem fazer o problema do coronavírus desaparecer no ar.

Claro, quando as coisas passarem, há muitas contas a se acertar. Tempos de crise são excelentes para desnudar as pessoas, revelando de forma clara o seu melhor e o seu pior. Mas a hora mais apropriada para se ter uma 'DR' com o mundo é mesmo essa?  

Há coisas mais sensatas para se fazer.

Muita gente recomenda ler, outro tanto desdenha. Eu fico com a primeira turma. Taí o David Foster Wallace que até rendeu um texto e puxou outra leitura, com reflexões semelhantes. Dessa vez, é James Baldwin:

“Você acha que sua dor e seu coração partido são sem precedentes na história do mundo, mas depois você lê. Foram os livros que me ensinaram que as coisas que mais me atormentavam eram as mesmas que me ligavam a todas as pessoas que estão ou já estiveram vivas”.  

E é mesmo uma escolha: entre você achar que é contra você e você, de fato, ser contra os outros.



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