Os TikTokers e Kpopers venceram com Biden

A política como a arte da convivência pública, com o avanço do tempo, sempre se renova. Há ciclos de poder que duram muito, pois entregam muito, enquanto outros morrem cedo, no ritmo da decepção que causam aos cidadãos. A vitória de Joe Biden, um senhor de 77 anos, foi impulsionada pela estreia na arena política de uma nova geração de jovens, com demandas de mais liberdade, de igualdades diversas (etnias, gênero, credos, origens), justiça social e sustentabilidade ambiental (bandeiras antigas), mas que usa o poder de engajamento em redes sociais para impulsionar suas mensagens, hinos e gritos.

No dia 20 de junho, grupos de TikTokers e fãs do K-pop (estilo musical sul-coreano, que faz sucesso com os jovens nos EUA) boicotaram um comício de Donald Trump, que passou vergonha diante da imagem de cadeiras vazias de um estádio de Tulsa, em Oklahoma, no sul, entre Kansas e Texas.  Eles se mobilizaram, reservaram as entradas e não compareceram, causando o vexame à campanha de releeição do presidente. Foi o principal assunto do noticiário naquele dia e um péssimo indicativo do que acabou se tornando realidade neste sábado (7):  o "showman", mestre no culto da própria personalidade, perdeu feio, saiu com fama de mau perdedor, que destila mágoa, ressentimento e rancor, sentimentos negativos em um contexto mundial de pandemia da Covid-19.

Ainda é cedo para dimensionar até onde vai a capacidade de um Governo Biden "curar" as feridas do país. Os embates entre os dois partidos majoritários vão continuar no Congresso. Por enquanto, as primeiras medidas do futuro presidente se concretizam por canetada: desfazer ordens de Trump contra imigrantes, muçulmanos, asiáticos, latinos, reconstruir a imagem de nação preocupada com questões ambientais, retomando a participação em acordos climáticos de zeragem de emissões de gases, atendendo à pressão do movimento de jovens liderado pela sueca Greta Thunberg, que declarou apoio a Biden.

Como previsto, a vice eleita Kamala Harris foi peça decisiva na corrida dos democratas pela Casa Branca. Não era só a vitória do presidente mais longevo dos EUA, mas também da primeira mulher, negra, de origem indiana e jamaicana, escolhida como vice. Não podemos esquecer a fase das primárias do partido em que Kamala alfinetou Biden por ter trabalhado com racistas durante um debate. A união da senadora da Califórnia, das forças progressistas da Costa Oeste, dos quartéis-generais das gigantes da internet, das redes sociais, da tecnologia, das ciências humanas, com a campanha de Biden e aliados da Costa Leste, das indústrias mais tradicionais, conseguiu produzir este sábado histórico de 7 de novembro.

Pode-se dizer que esta disputa representou um choque entre mentalidades urbanas e rurais. Saiu vencedora a ideia de que o conservadorismo está em todo mundo, mas a oposição a ele sempre ganha força quando os jovens decidem tomar partido e participar das discussões públicas. A vitória de Biden ainda é apenas um exercício de imaginação - a posse só será no dia 20 de janeiro, até lá tudo indica que Trump continuará com suas bravatas e intimidações aos princípios democráticos.  

A montagem de sua administração já começou. Todas as atenções se voltam para Susan Rice como futura Secretária de Estado. A ex-auxiliar de Barack Obama terá de consertar os estragos provocados por Trump nas relações diplomáticas dos EUA com superpotências e seus posicionamentos desastrosos em conflitos mundiais. Pete Buttigieg, veterano de guerra no Afeganistão e abertamente gay, também deverá compor a equipe de Biden, cuidando de assuntos ligados aos veteranos das forças armadas, uma força política fundamental do país.Buttigieg é o rosto da renovação de quadros na Casa Branca, provando que um aspecto de sua vida pessoal e íntima (a homossexualidade) não dimimui um líder no meio militar.

A mídia tradicional também saiu fortalecida nesta eleição. Os repórteres que cobrem a política em Washington D.C.,  Nova York e outras cidades importantes não disfarçavam a emoção ao narrar detalhes do discurso de vitória de Biden. Os jornalistas questionadores eram as principais vítimas das grosserias de Trump nas redes sociais e durante entrevistas coletivas. As hostilidades de Trump a jornais como The New York Times e a emissoras de TV, como a CNN, inflamavam sua base de apoiadores, mas a estratégia de reagir acusando os veículos de espalharem "fake news" contra ele só resultou em derrota.

 Biden tem suas limitações na promessa de unificar um país dividido, com os apoiadores de Trump espumando ódio, raiva e alimentando revanchismos. O futuro Governo sofrerá muitas tentativas de sabotagem, disputas internas entre suas alas por poder e, claro, terá de administrar o excesso de expectativas da população, que aguarda respostas rápidas e efetivas contra a segunda onda da Covid-19 e a lenta retomada da economia. Harris não esconde o desejo de ser presidente em 2024. Ter uma vice popular pode render intrigas e discórdias dentro do Partido Democrata. 

Com o Brasil há um longo caminho diplomático para estabelecer algum diálogo promissor. O atual ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, será pressionado pelos novos tempos a traçar essas pontes ou encontrar opções ao isolamento. Não se espera que o Brasil, nesta altura do campeonato, tome decisões hostis como voltar a exigir vistos de norte-americanos, a fim apenas de hostilizar Biden. O presidente Jair Bolsonaro perdeu um aliado externo em seu discurso com a derrota de Trump. Terá de se preocupar mais com as forças políticas locais, do Norte ao Sul do País, para reorganizar suas estratégias para a batalha da reeleição em 2022. Os próximos dois anos serão movidos pelo instinto de sobrevivência.