Ao contrário do que normalmente se pensa, a primeira forma de apropriação, de tomada de posse de algo por parte dos seres humanos, não teve como objeto coisas materiais, mas os inimigos, aqueles aprisionados na guerra, aqueles pertencentes a outros povos e culturas, a quem era negada a própria condição de semelhante, a própria humanidade.
Os homens aprenderam a se apossar das coisas, se apossando de seus oponentes, daqueles a quem disputavam o território, daqueles a quem viam como uma ameaça. A vitória sobre o inimigo permitia que se tomasse posse de suas coisas, das mulheres, das crianças, dos adultos, que eram integrados, paulatinamente, na própria vida do grupo vencedor, como escravos ou servos.
Veja também
A propriedade privada da terra, por exemplo, só surgiu muito depois e como consequência desse apossar-se dos corpos e da vida dos outros, que podia ser objeto de repasto reverencial e incorporativo. No ritual antropofágico devorava-se o guerreiro aprisionado ao inimigo para adquirir a sua coragem, a sua valentia, a sua energia.
Os homens primeiro separaram-se de si mesmos, estabeleceram distinções e conflitos entre si, e só depois separaram-se da terra, do cosmos, de tudo de material que estava à sua volta. A separação homem e natureza, fundamental na constituição do mundo moderno e de seus saberes, foi uma consequência da separação e conflito entre os humanos que nem chegavam a se reconhecer como iguais.
A objetificação das coisas do mundo, a transformação das coisas em objeto, vistas como distantes e distintas dos sujeitos é um processo que se inicia pela objetificação do inimigo, do grupo que disputa as fêmeas, o território de caça, pesca e coleta, a fonte de água, os lugares considerados sagrados ou vedados de acesso por tabus.
Quando os europeus chegaram na África, por exemplo, havia muitos povos, principalmente, aqueles organizados em grandes reinos, que já praticavam a escravidão ou servidão dos povos vizinhos ou inimigos derrotados em incursões guerreiras, mas que desconheciam a propriedade privada da terra, que não possuíam a noção de propriedade individual, que praticavam formas comunitárias e coletivas de uso da terra e de distribuição da produção.
Esses povos não pensavam a natureza como algo distinto e apartado do humano, como algo que se podia tratar como um objeto de um sujeito dela distinto, um sujeito que a contempla e a utiliza como alguém que dela não faz parte.
Para a ampla maioria das sociedades que foram objeto da conquista e da colonização europeia, os homens e mulheres eram parte integrante de um cosmos do qual eram apenas uma forma de vida em conexão com as demais formas da natureza, notadamente com as outras formas de vida, mesmo com aquelas existências ancestrais, que em forma de espíritos permaneciam se comunicando com e atuando entre os viventes.
Veja também
Os mortos não estavam mortos, eram seres que teriam adquirido outra forma de existência, assim como os espíritos, os deuses, as diversas formas de existências imateriais que também povoavam e compunham o cosmos.
Não se concebia a possibilidade de se apropriar da terra pois ela era a própria mãe de todas as formas de vida, de todas as coisas materiais e imateriais que a habitava. Os corpos humanos eram filhos da terra (daí os vários mitos de criação que fazem os humanos saírem das entranhas da terra, que fazem os humanos surgirem do trabalho de artesanato com barro da entidade criadora, como no mito bíblico da criação de Adão a partir de um boneco de barro).
Os humanos não podiam ser concebidos sem a terra, ela constituía o próprio corpo dos humanos. Assim como não se podia conceber um ser vivendo sozinho, um corpo que não fizesse parte do corpo coletivo da comunidade, da aldeia, da tribo, do clã, não se podia pensar o corpo apartado da terra, que lhe deu forma original e que o alimentava e nutria. Apropriar-se privadamente da terra era um sacrilégio, era uma violação desse pacto iniciado com a criação. Os humanos eram os corpos da terra, faziam corpos com a terra e a terra dava corpos aos humanos.
A emergência da propriedade privada implicou uma modificação profunda na forma dos homens verem o mundo e a si mesmos. A privatização da terra destruiu a visão cósmica do mundo, apartou os homens da natureza, fez dela objeto de domínio e de exploração por parte dos humanos. Apartados da terra, os humanos viram se aprofundar ainda mais a separação entre os próprios seres humanos, cada vez mais individualizados e egoístas.
A privatização das terras destruiu, paulatinamente, as formas comunitárias de existência, introduziu as distinções de classes, ainda mais insolidárias do que as hierarquias sociais anteriores. Nas sociedades em que já se havia desenvolvido hierarquias sociais, elas, quase sempre, tinham funções rituais, religiosas e nasciam das distinções entre sexos, idades, gerações e merecimentos guerreiros.
No entanto, na maioria dos casos aqueles que ocupavam posições de destaque eram cercados por normas e códigos que impediam que sua posição de autoridade desandasse em destruição das regras comunitárias, quase sempre eram obrigados a gestos de reciprocidade, de dádiva e estava subordinado aos ditames coletivos. Eles deviam ser responsáveis pela manutenção da harmonia e equilíbrio no interior do grupo, não podendo ele mesmo ser fator de desestabilização da vida em grupo.
A propriedade privada tornou os poderosos sem controle coletivo e potencializou a sua ambição, que passou a não ter limites, nem mesmo religiosos. A acumulação de riquezas tornou-se um objetivo em si mesmo, chegando a situação absurda atual na qual alguns poucos têm tanta riqueza acumulada que jamais saberiam dizer para que e por que acumular tanto. Uns poucos não sabem direito nem o que fazer com tanta riqueza acumulada e mantê-la e expandi-la viram os únicos objetivos que justificam suas vidas.
A apropriação privada das riquezas tornou os humanos egoístas e ainda mais competitivos, introduziu um novo motivo de conflito e divergência entre eles e se constituiu em mais um motivo de guerras e de violência sanguinária. A ideia de privacidade, consequência da privatização das coisas do mundo, isolou as pessoas, fez com que elas constituíssem mundos completamente apartados, como bem demonstra a lógica dos condomínios privados de nossos dias. O próprio entendimento e comunicação entre as pessoas foi sendo dificultada pela emergência de espaços segregados e dessas formas de vida que possuem pouco em comum.
A propriedade privada gerou, como o próprio nome indicia, a privação. Quando alguns privatizam as coisas do mundo, elas são retiradas da circulação e do usufruto coletivo, elas deixam de servir e pertencer a todos: alguns terão aquilo que deveria ser de todos, logo alguns ficarão sem nada ou com muito menos do que tinham.
A privatização da riqueza é a causa direta da pobreza, da carência e da miséria de muitos. Aquele que detém a riqueza passa a temer aqueles desapossados, passam a deles se defender, quando não os atacam e procura exterminá-los antes que a ameaça que representam aquilo que te se materialize. A propriedade privada é a mãe da insolidariedade, da dificuldade de partilha e de comunhão, do medo de e da agressividade em relação aos despossuídos.
Num gesto de defesa e de legitimação do fato de serem proprietários e de outros não serem, aqueles que detêm as coisas dirão que os despossuídos são culpados por sua própria miséria, não possuem o mérito necessário, não fizeram por onde possuir, não foram inteligentes e espertos o bastante, não se empenharam o suficiente, têm deficiências e deméritos que justificam ficarem sem nada no mundo.
A propriedade privada gerou esses seres monstruosos capazes de defenderem que deve haver uma ainda maior desigualdade entre os humanos, que aqueles que não desfrutam de uma posição privilegiada na partilha do mundo, devem ser penalizados por isso, devem ser obrigados ao trabalho para aqueles que dispõem do privilégio do ser proprietário. Há uma curiosa associação moral entre ser proprietário e ser alguém de valor, alguém superior, uma pessoa de bem, um homem bom. A falha moral da ganância e da soberba são transformadas em traços positivos.
O fato de ter a propriedade de parte da terra, da riqueza social, de coisas e objetos, fariam dessas pessoas seres superiores, que podem olhar para os sem terra, os sem propriedade, os sem nada, com desprezo e, no máximo, com uma pena condescendente, reservando para eles as migalhas benfeitoras da caridade, que apazigua a culpa de suas consciências do que resolvem as carências de quem as recebe.
A propriedade privada distanciou os humanos ainda mais uns dos outros, tornou as relações sociais ainda mais hostis e violentas e apartou o homem da natureza, fazendo do primeiro um ser predatório e destruidor, um ser que só pensa suas relações a partir da ideia de apossamento e domínio, tomando a tudo e a todos como estando submetidos aos ditamos da compra e da venda, reduzindo tudo e todos a objetos mercantilizáveis, a objetos usáveis e disponíveis para a troca, a venda e o usufruto.
A propriedade privada privou os humanos de uma visão de totalidade, de integração, de convivência, ela separou, desuniu, tornou os humanos estranhos e apartados uns dos outros, cada um em seu mundo privatizado ou em seu mundo privado de tudo.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.