Imagens depreciativas do nordestino: poder e controle social

Quando um autor de novelas afirma, com a maior tranquilidade, em frente a uma plateia lotada de atores nordestinos, que trabalharão em sua futura criação, de que sua obra repetirá todos os clichês em relação ao Nordeste e aos nordestinos, ele parece acreditar ou nos pretende fazer acreditar que esses clichês são inocentes, que eles não implicam em consequências sociais, culturais e políticas para quem são neles descritos e definidos. Ele tenta naturalizar a repetição das imagens negativas e depreciativas em relação aos nordestinos usando como justificativa que ele escreve para o povo e não para intelectuais (como se o que ele chama de povo não pensasse, não fosse também capaz de cognição e raciocínio, como se ele também não tivesse intelecto e, portanto, fosse também intelectuais).

Ao invés de pretender formar plateias que tenham acesso a novas formas de ver e dizer o Nordeste e o nordestino, ele prefere apostar no déjà vu, no lugar comum, no estereótipo, porque é de mais fácil recepção. Ao invés de apresentar imagens que causem estranheza, que causem incomodo pela novidade, que exijam dos espectadores um trabalho de ressignificação do espaço e do personagem que estão acostumados a ver de dada maneira, ele prefere, por motivos comerciais, para assegurar, inclusive, seu alto salário, como fez questão de dizer (segundo ele os intelectuais criticam tudo o que vê porque ganham pouco), apostar no mais fácil, que é repor o imaginário caricatural, depreciativo e completamente desligado da realidade do Nordeste e dos nordestinos na contemporaneidade.

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Os clichês, os lugares comuns, as imagens recorrentes e repetitivas, que circulam no interior da cultura, que compõem distintos discursos, como: os discursos midiáticos, os discursos acadêmicos, os discursos da literatura e das artes, os discursos que circulam nas situações e nas relações mais cotidianas, estão longe de estar isentos de consequências para quem é deles objeto. Essas imagens são aquilo que a pensadora feminista negra norte-americana, Patricia Hill Collins, chama de imagens de controle. Elas visam localizar dados sujeitos e, no caso, dados espaços, em lugares sociais, culturais e políticos subalternos, subordinados, evitando que eles possam ameaçar e contestar as hierarquias sociais, as hierarquias de valores, as hierarquias de poder que constituem a ordem e a estrutura de uma dada sociedade.

Essas imagens visam proibir, justamente, o deslocamento de lugar, a mudança de posição, o questionamento dos lugares prescritos para dados sujeitos e seus espaços de habitação. Elas oferecem, quase sempre, imagens degradadas para que os sujeitos a quem elas se endereçam as assuma como sendo suas identidades, seu próprio ser, as imagens de si mesmos.

Quando se faz questão de se recolar o nordestino no lugar do pobre, do periférico, do retirante, do trabalhador braçal, o que se está querendo é que ele não abandone esse lugar, que ele não ameace a quem assim o vê, o diz e o define, através de um processo de ascensão social. Imagem elaborada pelos descendentes das elites agrárias da própria região, que viviam um processo de declínio econômico e político, no início do século XX, como uma maneira de se defender, imaginariamente, do perigo de ver seus lugares sociais e de poder tomados e ocupados por pessoas que viessem a subir na escala social, elas foram apropriadas, referendadas e continuam a ser manipuladas pelas elites dominantes em nível nacional, as elites do Centro-Sul, que vieram, justamente, a assumir a hegemonia política e econômica no país e com a reposição dessas imagens exorcizavam e exorcizam seu medo de que seus lugares de domínio, recém conquistados, pudessem e possam novamente ser ameaçados pelas gentes advindas e nascidas no Nordeste (o autor fez questão de se dizer paulista, embora descendente de migrantes nordestinos, o que o autorizava, pretensamente, a dizer o que são o Nordeste e os nordestinos).

Quando se reproduz a imagem do nordestino pau-de-arara, cabeça chata, flagelado, magricela, pele e osso, quando se atribui a ele uma dada corporeidade inferior: feio, depauperado, macilento, amarelo, magro, desajeitado, mal se esconde o racismo que está na base dessas imagens. Os nordestinos são mestiços, são pardos, são negros, os nordestinos sofrem de um déficit de branquitude, que é o pretenso traço definidor e que confere uma superioridade ao sulista, ao paulista, etc. Na escala de cores o nordestino ocuparia as posições hierarquicamente inferiores, por isso seu corpo é motivo de tanta atenção, sendo a base de muitas discriminações.

O fato de que o diretor da produção televisiva considere um avanço que você tenha uma maioria de atores nordestinos fazendo personagens nordestinos diz muito de como esses corpos, mesmo que tenham todo o talento do mundo, são desvalorizados, ocupam um lugar de subalternidade, pois, não são os corpos adequados ou que se espera para figurarem numa produção para a televisão ou para o cinema, o teatro, etc. Ou seja, essas imagens conferem privilégios a alguns quando se trata de ocupar dadas posições no mercado de trabalho, inclusive no mercado cultural e artístico. Os nordestinos partem com um handicap negativo, têm que demonstrar sempre que são capazes ou se conformarem com os papeis que lhes são oferecidos, quase sempre de menor expressão e, muitas vezes, o papel caricatural e até risível, que vai repor o nordestino em seu lugar (os nordestinos, e os cearenses em particular, no lugar do humorista que faz rir às custas de se autodepreciar e depreciar sua região e seus semelhantes, fazendo a plateia sulista sair satisfeita por ver reposta as hierarquias regionais, de classe, de raça, de gênero, etc)

Quando se reproduz o nordestino como cangaceiro, coronel, jagunço, beato, como matador de aluguel, como um ser violento, machista, rustico, embrutecido, o homem cacto ou a mulher cacto, masculinizada, ou, à moda Juliette (que se tornou moda e vendedora de moda), como representante de um pretenso ser regional, que recita os lugares comuns e repete os estereótipos, deles se orgulhando (o orgulho de ser nordestino vai na mesma direção), repõe-se a imagem do nordestino como alguém que não pertence ao presente, ao mundo contemporâneo, um ser que ficou preso a valores e costumes de antanho, um ser anacrônico e que, por isso mesmo, não ameaça o lugar de ninguém na vida hodierna.

Localizar o Nordeste e o nordestino no passado é uma boa estratégia de desqualificação deles como agentes do tempo e da história presentes. Mitificar e adorar esses personagens transformados em ícones, inclusive de uma pretensa rebeldia, valentia e capacidade de revolta passada, é uma maneira de invisibilizar e silenciar sobre os nordestinos que, no presente, reivindicam mudanças sociais, inclusive, no cotidiano, questionam o status quo e provocam efetivas mudanças sociais.

Os intelectuais homens preferem falar da valentia e rebeldia, pretensamente contestatória da ordem, da parte dos machos cangaceiros, com suas masculinidades exacerbadas e misóginas, do que reconhecerem os avanços que as mulheres nordestinas conseguiram, ao longo do tempo, desempenhando, tradicionalmente, numa sociedade em que os homens se ausentam pela migração, um papel central nas famílias e nas comunidades. Ações e atuação que são desqualificadas e deslegitimadas através da imagem da mulher macho, pouco feminina, pouco atraente física e sexualmente.

A idealização romântica desses personagens masculinos, encarnação do cabra macho, é uma forma dos intelectuais e dos homens da região, exorcizarem o medo, a insegurança e o ressentimento que as mudanças introduzidas pelas mulheres nas relações de gênero vieram trazer.

A imagem da mulher macho é uma imagem de controle que visa fazer as mulheres nordestinas se adequarem ao que seria a verdadeira mulher, a mulher feminina e não a mulher feminista, quase sempre vista como feia, frustrada, e suspeita de serem lésbicas.

As imagens de controle visam repor hierarquias sociais e culturais e, por conseguinte, repor hierarquias de poder. Se os intelectuais, escritores e artistas nordestinos ameaçam a hegemonia dos intelectuais, escritores e artistas do Centro-Sul, logo eles são atirados para o lugar de autores regionais ou regionalistas. Se o livro Torto Arado, escrito por um escritor negro e nordestino, se torna o livro mais premiado, comentado e lido no país, logo surgirá uma tese acadêmica em algum estado do Sul, para classificá-lo como neorregionalista e, portanto, mesmo que não se dê conta, dando a ele um lugar de menoridade. Aqueles que ocupam os lugares de autores nacionais ou internacionais ficarão sossegados pois esses lugares hierarquicamente superiores, que conferem maior prestígio e poder, não estarão ameaçados. Assim como a literatura negra, de favelados, de mulheres, infantil, juvenil, não ameaçarão os escritores de literatura simplesmente, os autores da literatura canônica (quase sempre homens, brancos, de classe média). Cantores e cantoras, músicos que se nomeiam e se definem como regionais ou que assim são enquadrados, logo que aparecem, não serão páreo para aqueles que estão no panteão da música popular brasileira, e terão, portanto, um mercado e uma circulação demarcados.

As imagens de controle visam que algo não saia do lugar, não saia, justamente, do controle. A repetição de imagens clichê é a garantia que tudo vai permanecer como antes no quartel de Abrantes. É a garantia que aquela obra será politicamente conservadora, quando não reativa e reacionária, ao convocar que tudo permaneça nos mesmos lugares, que não haja mudança ou transformação, que as localizações e hierarquias entre espaços e identidades regionais, em que está dividido o país, se conservem como estão. Nada de intelectual mal pago do Nordeste vindo ao Sul maravilha, a Vênus Platinada dizer como autor paulista, bem pago, deve escrever ou representar a região a que pertence e com a qual convive, como deve fazer ver e fazer ouvir o personagem que ele próprio encarna, a despeito de todas as críticas, que por pobreza e inveja (afinal todo nordestino é pobre, ganha mal e tem inveja da riqueza do sulista e de sua soberba inteligência) do intelectual nordestino faz ele fazer as próprias imagens que o definem e a sua região. Petulância pretender ele próprio se dizer e se definir, já que deve ser um outro, de fora, mais abalizado que ele, que deve fazê-lo.

Imagens de controle são sempre imagens defensivas e, portanto, quase sempre depreciativas e medrosas, que um outro joga sobre aquele que vê como ameaça ao seu próprio lugar nas várias hierarquias de poder e de classe, como potencial adversário na luta pelos recursos financeiros e simbólicos de uma dada sociedade. O pior que pode acontecer é que aquele que ocupa o pretenso lugar de subalternidade achar que contemporizando, fazendo concessões, assumindo as imagens que o outro espera dele, vai conseguir ter sucesso ou mesmo até contribuir para uma paulatina mudança de posições do outro. Só há uma forma de se combater imagens de controle é se negar a assumi-las e encarná-las, é mostrando suas dimensões, ao mesmo tempo, perversas e ridículas.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.

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