Mais do que um enredo de Carnaval... E se o Messias pudesse ser seguido no Instagram?

Série de suspense da Netflix, "Messiah" discute a relação entre fé, geopolítica e os efeitos da mídia

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Deus, Alá, Jeová, Krishna, Olorum, Jah.

Há mais nomes pelos quais o Ser divino, infinito e eterno, que criou tudo o que existe no Universo é conhecido. E, embora as designações se refiram a um só Criador, as diferentes visões e conceitos que vêm atrelados a Ele separam, em lados opostos, os homens de fé. Homens que sonham com a Paz na terra prometida, mas ainda não aprenderam que a guerra jamais será Santa. 

Esse ano, no Carnaval, a Mangueira levou para avenida o questionamento: como Cristo seria recebido se voltasse a esse mundo separatista e caótico em que vivemos hoje?
Seria visto como santo ou marginal? Defendido como a encarnação do bem ou confundido com um louco aproveitador (do mal)? Um profeta da paz ou estopim de um conflito mundial?

Pois então...

É também (mas não só) a partir dessa premissa que "Messiah", série que estreou em janeiro na Netflix, descortina uma história de suspense. O roteiro se ampara não em sustos, mas sim nas relações entre fé, geopolítica e mídia para manter o mistério do começo ao fim da primeira temporada.

A produção chegou à plataforma de streaming envolta em polêmica, incluindo uma petição exigindo o seu cancelamento

Legenda: "Messiah" é entretenimento, mas exige reflexão.
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Muçulmanos e muitos cristãos não gostaram do que não viram, mas ouviram falar. O clamor pela censura, pelo menos no Ocidente, teve efeito contrário e muita gente quis conferir o porquê de tanta controvérsia. 

Assim, Michael Petroni, conseguiu o queria: barulho em torno de seu "Messiah". Aliás, ele foi bem claro ao dizer que a série foi feita "para provocar e não para ofender".
O diretor só esqueceu de falar que sua obra ficcional consegue despertar também o interesse pela realidade dos conflitos que assolam o Oriente e produzem hordas de refugiados. Dá vontade de saber mais sobre como fomos (e somos) capazes de deixar homens, mulheres e crianças percorrer a Via Crucis da intolerância e continuar de olhos fechados. Penso como a história está sendo escrita diante de nós. E do quanto somos tão egoístas que só conseguimos enxergá-la quando a ficção a esfrega em nossas caras.

A trama começa na Síria, onde somos apresentados ao misterioso Al-Masih, interpretado por Mehdi Dehbi. O termo 'Masih', aliás, dependendo de como for usado em determinado idioma, pode ser traduzido como Messias ou como anticristo. 

Essas são as marcas da série: a dualidade, a dúvida, o mistério da fé. Os elementos acertam em cheio quem é curioso. As perguntas que nunca calam são as iscas que nos levam a atravessar os 10 episódios

Como eu dizia... Numa Damasco vigiada por militares americanos e prestes a ser invadida por soldados do Estado Islâmico (ISIS), um homem com veste amarela (de calça jeans e tênis) começa sua pregação. "Nada é por acaso. Tudo está nos planos de Deus. A balança pende", ele diz. "A história chegou ao fim", completa.

É nesse instante que, milagrosamente, uma tempestade de areia chega e, por mais de 30 dias, assola a cidade. Mas também a protege e desmonta os planos dos inimigos que são derrotados. Dor e glória... os dois lados da mesma moeda. 

Vale citar que, em 2015, uma tempestade real atingiu a Síria e provocou um cessar fogo durante algum tempo
 

Depois de vaticinar o fim do inimigo, Al-Masih ganha seguidores (conhecemos bem essa palavra na Internet, não?). São mais de 2 mil que passam a acompanhá-lo pelo deserto rumo ao desconhecido. O profeta prometido, para esses palestinos errantes, finalmente,chegou!

Do outro lado do mundo o movimento não passa despercebido aos olhos da agente da CIA Eva Geller (Michelle Monaghan). Primeiro, a história ganha corpo nas redes sociais e não tarda a merecer a vigilância de satélites norte-americanos. "De onde ele vem?", "Para onde vai?" e "O que ele quer?" intriga Eva que, o tempo todo, parece cansada demais, solitária demais, doente demais. O homem desconhecido lhe dá um motivo para prosseguir. Pode ser sua última missão. 

O caminho do suposto enviado de Alá também cruza com o do agente israelense Avrim Dahan (Tomer Sisley) que o prende, interroga e, depois de uma série de acontecimentos inexplicáveis, acaba caçando-o através da Jordânia e de lá até o Texas. 

Nos Estados Unidos, um novo "milagre" acontece literalmente no olho de um furacão e às portas de uma Igrejinha, cujo pastor estava prestes a desistir de sua fé. Milagre, coincidência, sorte, trama internacional ou trapaça?

Sem saber exatamente o que Al-Masih evoca, desta vez são os cristãos que começam a escutar sua Palavra. E a segui-lo com esperança renovada. Os feitos do estrangeiro de cabelos longos, barba fechada e olhar profundo lembram demais o Nazareno que um dia andou sobre as águas. 

Ávidos por um Salvador, os fieis registram todos os seu atos com celulares. Sua imagem, fala e gestos são distribuídos pelo mundo. Dão a ele a onipresença no Instagram, Facebook e outras tantas redes sociais. A imprensa também cerca o homem que se parece e fala como se fosse Jesus. 

Ao mesmo tempo, os falsos pastores enxergam nele a chance de transformar seus púlpitos em máquinas de fazer dinheiro. Para a CIA, porém, esse homem é, acima de tudo, perigoso. Um terrorista, talvez. Ele guia desesperados. E tanto pode estar criando um culto poderoso quanto um novo exército capaz de colocar fogo em barris de pólvora milenares. Judeus e palestinos. Xiitas e sunitas. Ocidente contra Oriente. Ele surgiu do nada e ninguém sabe quem é. Ele é um sopro de vida ou o hálito da morte que precede o fim dos tempos?

A cada novo episódio, a trama leva o espectador a andar na corda bamba. Ora acreditamos estar vendo o Segundo Advento. Ora, feito Judas, duvidamos do caráter divino que  cerca Al-Masih. No lugar do Salvador, vemos o esboço de um impostor e assim continuamos em meio ao suspense. 

Embora, algumas vezes, a série pareça um pouco arrastada. Vale a pena ter fé. As cenas de ação são bem apoiadas pelos efeitos especiais. O elenco não ganharia um prêmio no SAG Awards, mas aguenta a trama. Os diálogos talvez sejam o ponto mais fraco, mas não conseguem estragar a proposta.

"Messiah" não é uma produção herege como os extremistas querem fazer parecer. Na verdade, a história parece ser construída a partir da teoria proposta por Samuel P. Huntington, cientista político autor de "Choque de Civilizações"

Homem de Harvard, Huntington previu que as identidades culturais e religiosas dos povos seriam a principal fonte de conflito no mundo pós-Guerra Fria. Seu livro, aliás, aparece em destaque numa cena do primeiro episódio.

Parando para analisar o argumento da série, é possível perceber que talvez não estejamos prontos para um Salvador que pregue conciliação, paz e respeito aos que pensam (e são) diferentes. A ambição pelo poder ainda cega mais do que as areias do deserto quando acertam os olhos. 

E, em se tratando de religiões, as diferentes "verdades" não libertam. Quando ameaçadas, elas fazem jorrar sangue em meio às guerras santas. Pelo jeito, ainda não aprendemos a lição. 



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