Não sinto saudade de nada

Legenda: dentro de casa reflito sobre qual mundo encontraremos lá fora. E quem eu serei.

Tempos de pandemia. Isolamento social. Quarentena. E leio um bocado por aí: do que você sente saudade? E me pego pensando que não sinto saudade nem um pouco da vida que vivia até ontem. Claro, sinto saudade das pessoas, dos encontros e dos abraços. Mas desejar que tudo volte ao normal? Não, não. Porque aquele considerado normal já me adoecia. O excesso de produtividade, o trabalho sem fim, o tempo escasso, a eterna sensação de que ainda faltava muito o que fazer. O sorriso sem verdade na foto compartilhada, a cobrança por ser feliz, a necessidade da beleza. Muitas eram as prisões em que estávamos acorrentadas e nem nos dávamos conta disso. 


Não, eu não estou grata pelo que está acontecendo. Jamais estaria por algo que causa tanta dor e sofrimento. Mas, estou lidando da maneira que posso. E, nessa forma, não há espaço para o saudosismo do que era aceito como rotineiro. Não sinto falta de mal ver meu companheiro em casa, muito menos de chegar exausta na happy hour sem forças nem para interagir com os amigos. Zero saudade de não ter espaço mental para aprender algo novo, de não ter espaço na agenda para fazer uma atividade que gosto e, ainda, de não poder nem, simplesmente, não fazer nada. 


Não sinto saudade do consumo desenfreado, da preguiça de interagir até com o vendedor que está lá disposto a ajudar, do comprar para tentar preencher algum buraco emocional. Não sinto falta do mercado que estimula isso de forma incansável para que você consuma e, quem sabe assim, se sinta melhor. Mesmo que não tenha tempo, espaço e nem vontade de usar qualquer uma das coisas. E, muitas vezes, nem dinheiro para comprar aquilo e se atolando em dívidas que não sabe como vai pagar. Mas está ali, com uma roupa, carro, comida, esmalte… qualquer coisa nova. Agora você olha para o lado e diz "como isso vai me ajudar nesse novo momento? O que de fato é importante ter agora?". Você já pensou sobre isso? 


Não sinto saudade da maneira predatória como o "mundo normal" trata a natureza. Como ter saudade de um sistema que destrói um rio inteiro e fica por isso mesmo? Que não reflete sobre o consumo de carne animal? Que joga areia no mar para ter mais espaço para evento ou para que as águas não destruam aquilo que o homem construiu? Que irônico. Não haverá, tão cedo, mais shows. Nem pessoas na calçada. Nem carros na rua. 


E aí fico pensando, porque eu vou me apegar a essa vida, abraçada a uma realidade que já não existe mais e que, de maneira geral, já não era saudável. Não quero um retorno a essa vida. Estamos em pausa e na luta para ultrapassarmos esse momento. 


E ainda abraçadas à essa saudade, perguntam: Qual vai ser a primeira coisa que você vai fazer quando a quarentena acabar? Mas, o que eu acreditava ser essencial, já não mais é. O que eu imaginava ser importante, já mudou. Sei as pessoas que me são caras e é pela saúde delas que eu me apego. São elas que desejo encontrar e, para isso, cumpro as orientações para tentar diminuir os traumas da epidemia. Então, a minha resposta para aquela pergunta é: não sei. Pois eu não sei o que vou encontrar quando ela terminar. Eu, certamente, já não serei a mesma. O mundo, muito menos. Entre a saudade e o desconhecido, eu agora tenho mais vontade de saber como será a vida que virá. 



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