Ver os mortos no Oscar é um dos melhores momentos da premiação

Capaz de arrebatar paixões cinematográficas, inflamar debates acalorados entre cinéfilos e unir as mais distintas criaturas em frente da televisão, a cerimônia de entrega do Oscar consegue, por vezes, atingir uma façanha inesperada.

O misto de glamour, pieguice e barra forçada do evento costuma ser cenário de discussões um pouco mais sérias e comprometidas. Política, comportamento e demandas sociais teimam alimentar e oferecer outra dinâmica à festa dos bacanas norte-americanos.

É comum o roteiro da entrega ser atravessado no meio do caminho. Ao longo de 91 edições, algumas situações ou cenas conseguiram ser bem mais interessantes do que boa parte das produções envolvidas na disputa. A lista de exemplos, felizmente é vasta.

Marlon Brando levou a estatueta pelo papel de Vito Corleone em "O Poderoso Chefão" (1972). "Levou", em termos. O astro protestou contra a maneira que Hollywood retratava (ainda retrata, pois) a população indígena e se negou a receber o prêmio.

Nem pisou lá. Sacheen Littlefeather, atriz e ativista pelos direitos dos nativos americanos representou o astro na entrega. Paramentada com roupas tradicionais, a inesperada visitante fez um breve discurso improvisado e declamou as razões de senhor Brando desistir da honraria.

Um ano depois, nem a classe de David Niven (1910-1983) podia supor a intervenção de um homem nu na cerimônia. Apontando um sinal de paz e amor em uma das mãos, Robert Opel (1939-1979) correu do jeito que veio ao mundo pelo palco. "Não é fascinante pensar que provavelmente a única risada que aquele homem arrancará em toda a sua vida será por se despir e mostrar suas imperfeições?", arrematou o artista britânico. 

Óbvio, alguns desse fatos foram mais recentes.

Em 1999, um episódio constrangedor abriu as catacumbas de Hollywood e libertou fantasmas dolorosos. Elia Kazan (1909-2003) entrou para a história por sucessos como "Vidas Amargas" (1954), "Viva Zapata" (1953), "Um Bonde Chamado Desejo" (1951), "Sindicato dos Ladrões" (1954), "Clamor do Sexo" (1961), dentre outras obras fundamentais.

Porém, o realizador turco levou para o túmulo uma fama das mais indigestas. Até hoje é conhecido como um cabueta clássico. Enquanto X9, entregou uma pá de colegas ao infame Comitê de Investigações de Atividades Anti-Americanas. No fim dos anos 1990, o diretor foi homenageado pelo conjunto da obra. Martin Scorsese e Robert De Niro assumiram o bucho da entrega. 

Com 89 aninhos nas costas, Kazan seguiu o protocolo de receber o prêmio e a reação da plateia foi mista. Aplaudido por alguns (Kurt Russell, Meryl Streep e Warren Beatty) e totalmente ignorado por outros (Nick Nolte e Ed Harrison), o homenageado escreveu um dos últimos capítulos dessa controversa biografia. 

Recentemente, o mesmo Warren Beatty, na companhia de Faye Dunaway, protagonizaram uma enrascada digna de Bonnie e Clyde. A dupla anunciou o Oscar de melhor filme "La La Land". Depois de um disse me disse, o erro veio à tona. O verdadeiro vencedor era "Moonlight"

Imortais

Os equívocos históricos do Oscar, no tocante a representatividade étnica e de gênero, pesam bem mais do que a série de gafes ou vacilos rotineiros da festa. Domingo (9), outro capítulo promete ser contado nessa quase centenária instituição do entretenimento. A expectativa das premiações, os bolões com os agraciados são alguns combustíveis da noite. De todas as cerimônias vistas até hoje, um momento em especial sempre causa comoção. 

É quando profissionais da indústria cinematográfica, falecidos no último ano, são reverenciados pela Academia. Um a um, cada artista é lembrado na apresentação. Alguns ganham mais destaque, outros passam mais despercebidos. O nome disso é vida. 

Homenageado

No meio de tanta pompa e circunstância, smokings estalando de novos e vestidos finos, a possibilidade de celebrar os mortos ganha certos ares de poesia. Afinal, a única coisa que aproxima nós, meros mortais, daquelas estrelas sagradas é o fim. Diante de tando ouro e alegria, o desterro é a conexão mais violenta e inevitável com aquela festança. 

Certamente, dentre os nomes lembrados pela 92ª cerimônia estará Kirk Douglas (1916-2020). Um gigante. Viveu enormes 103 anos e levou consigo um dos últimos suspiros de uma Hollywood dourada. Criou personagens únicos, estrelou peças fundamentais à sétima arte e se destacou também como produtor e ativista.

O ator foi determinante na obscura década de 1950 ao peitar a nefasta caça às bruxas comandada pelo senador Joseph McCarthy (1908-1957). A mesma que carimbou a vida do citado Elia Kazan. Douglas segurou as pontas, bateu pé e revelou que o roteirista Dalton Trumbo (1905-1976), banido de Hollywood por ser comunista, iria trabalhar em "Spartacus" (1960).

Nem só de "and the Oscar goes to" se faz um Oscar.