O cinema mundial e a cultura brasileira perderam José Mojica Marins. Desde a notícia da morte, confesso, me faltam palavras ou reflexões mais profundas na tentativa de descrever ou assimilar o ocorrido. O diretor, ator, editor, roteirista, apresentador (e o que mais fosse necessário para sobreviver no meio artístico) parte aos 83 anos. Deixa imensurável contribuição às artes.
A filmografia aponta mais de 30 títulos, entre eles “À Meia-Noite Levarei Sua Alma” (1964), “Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver” (1967), “O Estranho Mundo de Zé do Caixão” (1968), “O Despertar da Besta” (1969), “Exorcismo Negro” (1974) e “Encarnação do Demônio” (2008). Sedimentou no imaginário popular a persona do Zé do Caixão. Também conhecido em terras estrangeiras como Coffin Joe.
Mojica também estrelou programas de televisão em diferentes décadas. Foi personagem de quadrinhos (era um amante e colecionador voraz de gibis). Gravou marchinha de Carnaval, me refiro à canção “Castelo dos Horrores”, de 1969. Deu aulas de interpretação. Foi chamado para exorcismos. Tentou vaga na política. Estampou nome e rosto até em garrafa de cachaça, o “Marafo do Zé do Caixão”.
Segue imortalizado na capa do segundo álbum de outro Zé, o Ramalho. Em "A Peleja do Diabo com o Dono do Céu" (1979) constam o compositor paraibano (no papel de “Dono do Céu”), uma mulher vampiresca (interpretada pela atriz Xuxa Lopes) e a encarnação diabólica do Zé do Caixão. O ensaio fotográfico é assinado pelo cineasta Ivan Cardoso. A produção ainda inclui Satã (ator e guarda-costas de Zé do Caixão), Mônica Schmidt e o artista Hélio Oiticica (1937-1980).
José Mojica Marins foi um dos realizadores brasileiros mais prejudicados pela censura da Ditadura Militar (1964-1985). Teve filmes mutilados e proibidos. Se era tratado como pervertido, anormal ou figura perigosa na visão dos censores, amargava, por sua vez, o descrédito da imprensa e de boa parte dos cineastas, colegas de profissão. Seja na Boca do Lixo, Paris ou Mooca, testemunhou quedas e alegrias.
Josefel Zanatas
Por detrás da imagem folclórica, constituída da capa preta, cartola, longas unhas e das "pragas do dia", existia um trabalhador da cultura de origem humilde. Mojica aprendeu a fazer filmes vendo filmes. O filho único de André Marin e Carmen Mogica Imperial veio ao mundo numa sexta-feira 13. Quis o destino que o pai fosse gerente de cinema e a família morasse nos fundos do prédio no qual funcionava o cine. Naquele lugar, conheceu Vicente Celestino (1894-1968). Ali, adentrou universos inimagináveis em cada projeção feita na telona.
Descrever a relevância artística de José Mojica Marins é tarefa árdua, repito. Todavia, exercício urgente no propósito de elucidar parte do tratamento destinado à cultura no Brasil. Zé contrariou estatísticas. Lutou contra a ideia de que cinema era reduto de uma determinada elite intelectual.
Desafiou convenções. Apanhou dos inúmeros preconceitos sofridos. Também soube drilbar com astúcia e malandragem a série de percalços que enfrentou. Arreganhou as taras de uma sociedade carcomida e presa a dogmas religiosos. Denunciou a decadência e os efeitos da crescente urbanização. Foi brutal e único ao criar o Zé do Caixão, um coveiro descrente, desgarrado, cínico e ofensivo à dita “normalidade”.
Se oriundo de terras civilizadas fosse, a morte de José Mojica Marins seria motivo de comoção e homenagens à altura de sua vida. Como afirmado a pouco, difícil descrever com precisão a lacuna deixada. Por ocasião dos 80 anos do artista, escrevemos o especial "Novos feitiços do Zé do Caixão" para o Diário do Nordeste. Outra leitura recomendada (em verdade, indispensável) é a biografia "Maldito", escrita por André Barcinski e Ivan Finotti.
“O que é a vida? É o princípio da morte.
O que é a morte? É o fim da vida.
O que é a existência? É a continuidade do sangue.
O que é o sangue? É a razão da existência!”
Obrigado, Zé.