Evoluímos do 'ninguém solta a mão de ninguém' para 'eles que lutem'

Menestrel da postura "farinha pouca, meu pirão primeiro", a rede social é o teatro da vaidade

Dia desses tive a sorte de ouvir as ideias de um cientista. O amigo em questão é físico e chegado nas horas vagas a tirar um som na guitarra. É também gente disposta ao papo de boteco. O tipo de conversa sem roteiro prévio, ungido no rigor do descompromisso, entrecortado somente pelo exercício de não deixar o copo vazio. Apocalíptico, o diálogo destampou o dilema da dependência tecnológica. Ou algo semelhante.

Perdemos a guerra para as máquinas há tempos. Não precisa um T-800 da Skynet vir do futuro tocar o terror. Os celulares chegaram antes. Na tentativa de embasar essas leituras confusas soltei uma frase pronta, genérica e galerosa até à medula: "Nenhum napalm foi tão eficiente em derrubar governos quanto o WhatsApp".

A dor de cabeça com o aplicativo verde tinha pertinência naquela altura dos acontecimentos. Anos presenciando (de muito longe) as disputas eleitorais, o smartphone assumiu a dianteira enquanto arma no campo de batalha partidário. 

Segundo o professor e pesquisador do início do texto, três situações ou características influenciam na popularidade do referido programa de celular. A credibilidade de quem envia a mensagem, o poder de criptografia do "Zap" e a deficitária abertura do brasileiro ao mínimo rigor da pesquisa científica.

Vamos por partes

Um exercício. Pensemos o exemplo da fictícia Dona Regina. Certa noite de lua cheia, dispara no equipamento da gentil senhora uma notícia cabulosa. "Se as pessoas soubessem o que aconteceu, ficariam enojadas", desafia o material. A montagem denuncia o plano maléfico de doutrinação das criancinhas. Os inimigos vão distribuir kits com mamadeiras cheias de golden shower. O horror em forma de mensagem foi enviada por Odilon, sobrinho da dita cuja. 

O laço de sangue, a proximidade familiar entre os dois interlocutores amplia a gravidade do conteúdo. Diferente de carnavais passados, Regininha agora se informa por alguém de "total confiança". Aturar o boa noite do William Bonner, para alguns, é coisa do passado. "Meu sobrinho (ou primo, amiga, esquema, tio, pai, filho, filha) me disse. Então é verdade". 

Por sua vez, a criptografia sugere a total segurança na troca destas mensagens. Impede ação de hackers e que o sistema do aplicativo leia o conteúdo enviado. Regininha e Odilon estão livres e sem os olhos do grande irmão para atrapalhar a difusão de sandices. Em tese, claro. 

Para completar o trio de propostas elucidativas, o brasileiro é pouco dado a checar, conferir ou desconfiar de uma dado. Formação escolar deficitária, compreensão textual porca, frustração ou medo de perguntar e se passar por abestado. Muitas são as razões da catástrofe, mesmo a informação sendo repassada por estranhos ou desafetos. 

"It's Alive It's Alive!" 

Quando a persona de um cientista é lembrada, o senso comum nos joga na mente a imagem daquele doutor maluco de filmes B de horror e ficção. Um equívoco. Pesquisar, criticar, comparar dados e investir na ética são valores necessários até para quem não teve a oportunidade do diploma na mão. 

Regininha pode até ter compartilhado a publicação das mamadeiras por inocência ou vazio existencial. Todavia, em algum estágio do processo, alguém vai, na pura crocodilagem, divulgar uma informação falsa. Com intuitos próprios e pouco disposto a refletir em torno da coletividade. 

Menestrel da postura "farinha pouca, meu pirão primeiro", a rede social é o teatro da vaidade. Na defesa de nossas posições políticas, ambições e desejos podemos cair no erro de assumirmos a carapuça de Reginas e Odilons: Desinformar enquanto estratégia de guerrilha virtual. 

O diabo é o pai da hoax

Um edital da Fundação Nacional de Artes (Funarte), dedicado a bandas e projetos voltados à música de concerto rendeu discórdias, disse me disse e histeria na internet. O Prêmio Funarte de Apoio a Bandas de Música 2020 objetiva distribuir 790 instrumentos de sopro para 158 conjuntos musicais espalhados pelo País. Alguém acessou o documento de divulgação do prêmio, notou que "bandas de rock" estavam fora do concurso e ligou os pontos: 

"Edital da Funarte proíbe inscrição de bandas de rock".

Em minutos, a notícia ganhou compartilhamentos massivos e ares de escândalo. Ninguém vasculhou ou quis devassar o texto original do concurso. Desde 2010 (quando tinha outro nome e formato de premiação), a iniciativa atua com esse público específico. Rock, assim como bandas de instituições religiosas, militares ou que ganharam algum recurso nos últimos dois anos também estão fora. São as mesmas regras. Seja nos tempos de Lula, Dilma ou Temer. É igual agora com Bolsonaro.  

Muito do furor e revolta tem explicação. Declarações alucinadas do presidente da Funarte, Dante Mantovani, cegaram a vista da roqueiragem. Meses antes de assumir o cargo, o gestor indicado por Roberto Alvim (ex-secretário especial de Cultura, demitido após acusações de apologia ao nazismo) destilou um caminhão de bobagens contra o rock'n roll.

Aquele papo carola e medieval conhecido de sempre. Resumindo, nas palavras do maestro, rock é coisa do capeta, de drogado, maloqueiro e bandido. Leva ao aborto. Até os Beatles viraram comunistas infiltrados. 

Bombardão Tuba ¾ em Sib

Vi músicos profissionais, integrantes de bandas independentes, muitos deles professores e pesquisadores, caírem no clique fácil. Associaram a não presença de bandas de rock no edital ao tratamento destinado à cultura no atual Governo. Sim, o momento é delicado. Cultura e ciência são alvos de ódio. Censura é motivada por fanatismo religioso e defesa do ideal de "família de bem". Conquistas sociais de minorias são questionadas e devoradas. Inegável. 

Porém, na balada do "farinha pouca, meu rock primeiro" teve quem (mesmo sabendo do caráter equivocado das notícias publicadas sobre o tema) sustentasse argumentos como: "Não dá pra tocar rock com esses instrumentos?". Bem, se faz samba até com caixa de fósforo.

Defender a criação de novos editais, voltados especificamente para bandas de rock foi debate pouco incentivado. Ampliar a mesma oferta para outros gêneros musicais passou longe. Não. A postura usual foi temos banda e exigimos participar do Prêmio Funarte de Apoio a Bandas de Música. Só faltaram escrever um "Tá, ok?" no fim da frase. Assim, evoluímos do "ninguém solta a mão de ninguém" para "eles que lutem".  E a tola Dona Regina preocupada com mamadeiras. 

Em tempo, a lista de instrumentos concedidos pelo prêmio inclui:

“Bombardino em Sib”, “Bombardão Tuba ¾ em Sib”, “Clarineta 17 chaves em Sib”, “Saxofone Alto em Mib”, “Saxofone Tenor em Sib”, “Trompete em Sib”, “Trombone de Vara em Sib”, “Flauta Transversa em Dó” e “Trompa Cromática em Fá/Sib”.