Caetano Veloso volta a estacionar o carro no Leblon

Um prato e uma faca, a história do samba de roda baiano e o jornalismo cultural

Legenda: Caetano e os filhos durante live. Prato e faca usados por Moreno levantou discussões

Caetano Veloso celebrou os 78 anos de vida com uma apresentação aguardada por muitos fãs. Ao lado dos filhos Zeca, Tom e Moreno, o baiano desfilou generoso repertório durante a live realizada direto de seu apartamento. Correram os dias e o show intimista rendeu debate dos mais complexos. 

Em determinado momento da live, Moreno toca um prato e faca. A cena com a execução da ferramenta rítmica chamou atenção da cobertura realizada pela revista Rolling Stone Brasil. Uma publicação descreveu o uso dos itens como um "momento inusitado e cômico".

Ainda na tentativa de narrar a participação do músico, a matéria completa que a escolha do prato e faca denotariam improviso, pois se tratava de uma falta de instrumentos. As críticas explodiram. O que poderia ser apenas mais uma "polêmica da semana", entra em jogo o desconhecimento da história do samba de roda baiano.

As raízes em torno do uso desse instrumento remetem à cultura afro-brasileira. Em particular, para Caetano, representa também todo um contexto familiar. A genitora da família, Dona Canô (1907-2012), tocava seu prato e faca. A percussão resgata nomes como João da Baiana (1887-1974) e Dona Edith do Prato (1916-2009). Edith, por sua vez, participa do disco "Araça Azul" (1972), de Caetano. No caso, na faixa de abertura "Viola meu Bem" e em "Sugar Cane Fields Forever". 

A proximidade com o rico tema, que praticamente corre em suas veias, fez Caê queimar ruim contra a publicação. O músico mandou o recado. “Prato e faca em um samba de roda da Bahia é obrigatório, instrumento tradicional. Não só na Bahia. João da Bahiana e aqui no Rio ainda tem gente que toca em área de samba mesmo. Agora uma revista de música pensar que o prato e faca foi inventado na hora porque Moreno não tinha instrumento, é uma maluquice, uma ignorância inacreditável”, afirmou. 

A enérgica reação, tanto do veterano, como dos perfis virtuais intrigou num primeiro momento. "Seria exagero?", pensei. Afinal, mais de cem mil brasileiros mortos pela Covid-19. Um contexto político nefasto, marcado pelo ataque sistêmico à cultura, ciência e direitos humanos. Sem me alongar por demais, o momento é doentio e inexiste qualquer perspectiva de melhores dias no horizonte. 

Diante de tanto horror, um nome como Caetano, passado na casca do alho, comprar uma briga de internet por conta de um prato? Continuo, razões para reclamar não lhe faltam. Refletindo um pouco mais à frente, o desconhecimento em relação ao prato e faca não seria resultado desse constante ataque às expressões populares? Reverbera, assim, a secular política de morte brasileira.

Impossível negar o vacilo da publicação. Sem querer recorrer ao expediente do corporativismo barato, jornalista, infelizmente, não detém o completo conhecimento de tudo. Após a repercussão, ler (um pouco) sobre a riqueza, força e ancestralidade que remetem ao ato de tocar o prato foi salutar. 

Em outra perspectiva, senti carecer, no tribunal online, uma reflexão em torno da lida do jornalista. Debater como andam as condições de trabalho dessa turma, por exemplo. A caixa de comentários das redes sociais, definitivamente não irão suprir essa lacuna. Caetano exigiu um profissional com "aprofundamento necessário" para escrever sobre a live. Reitero, ele está coberto de razão. 

O destino costuma fazer das suas. Nove anos atrás, Caetano Veloso era flagrado estacionando no Leblon. O fato, sem qualquer relevância jornalística, virou manchete. Não sei responder (e nem pretendo) se esse episódio é a pedra fundamental desse tal "jornalismo de famoso". No entanto, a "matéria" intitulada "Caetano estaciona carro no Leblon nesta quinta-feira" guarda certa proximidade com a cobertura que desmereceu o prato e faca. 

Em março último, o perfil oficial do artista comemorou o aniversário da presepada ocorrida no bairro de bacana carioca. "Relembre a matéria de 2011, publicada pelo Terra, que viralizou e se tornou um meme lembrado até hoje", detalha a postagem. Como são as coisas, não é que o carro de Caetano continua estacionado lá. 

A #LiveaLenda está disponível no Globoplay até 7 de setembro para não assinantes. 



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