Na falua do passado

Em janeiro vá ao Ipu. A cidade que conserva a mesma tez. O mesmo rosto cândido. Os meus passos litúrgicos do passado. Não se navega numa falua triste, pesada, esquecida e sonolenta. Navega-se na bruma pura que encanta a serra. Que enche a Bica de florida luz. Ir à cidade de Ipu, em janeiro, é ver o mártir santo, S. Sebastião. Mas é mergulhar na sinfonia dos seus sobrados. Nas manhãs de céu d'esmalte. No aroma do rossio, onde o sol macio se deita para se erguer numa serrania orvalhada, que goteja passado sobre o casario silencioso e manso. Nasci em Crateús, mas o pomo mais saboroso de minha infância sorvi nas praças solitárias do Ipu. Este ano voltei a navegar, neste rio fogoso, onde meu coração mergulhou nas águas umedecidas e fecundas. Fez propulsar meu coração envelhecido.

Fui contemplar sua igreja majestosa. Suas retretas. Sua banda de música centenária. Fui sobretudo me encontrar com versos e poemas. Fiam este quadro as associações: Alca (Academia do Ipu), e Afai (Associação dos Filhos e dos Amigos do Ipu). Nutrem este mar de reencontro. Lembram as velhas faluas que navegam no rio Tejo. Caminhando num alegre canto, onde a alma se rejubila dentro do peito. Fui à loja de licor do seu Chiquinho. Um belo senhor de 94 anos que traz nos pequeninos olhos, flores de felicidade. E diz: "sabia que você viria, pois o sol nasceu mais belo". Seu licor mais precioso é sua ternura.

Este ano foi instituída a Comenda Mons. Moraes. Francisco Moraes, nascido em 1911, juntamente com a cidade de Crateús, mas que passou toda a sua vida no Ipu. Fez escolas, fez hospitais, fez maternidade, fez capelas e até estradas. Fartou tantos na taboa da Eucaristia. Batizou, casou e ungiu a muitos. Ipu agradecido, o homenageia. Ainda é forte sua presença no seio daquele povo querido. Mia Couto, diz que "o morto amado nunca para de morrer". O amor nos lega um morrer que nunca finda. O morrer fica em nós. O morrer morre em nós. E cicia vivo nesta memória. Frutifica a dor na dorida saudade. Se o amado morre, morremos com ele. No lago da vida convive a morte que a luz pranteia. Mas no peito o amor moureja de alegria por tê-lo amado. De tê-lo tido em nós aconchegado. No final, a procissão. O bispo, o pároco, o prefeito, o povo de Deus, Igreja em saída, como exalta o papa Francisco. Em janeiro, vá ao Ipu.

José Maria Bonfim de Morais. Médico cardiologista