“No Brasil imperial já existia um começo de classe média”

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A origem da classe média brasileira remonta ao Brasil imperial. No entanto, foi na modernidade que ela se firmou e, hoje, embora esteja ´agonizante´, continua forte no País, como admite, Francisco Teixeira, professor universitário de Economia Política. Ele questiona a pesquisa do governo que identifica como fazendo parte da classe média pessoas que ganham de R$ 1 mil a R$ 4 mil. ´Que classe média tão pobre é esta?´

O que significa para o governo a ascensão da classe média no País?

Primeiro, não se pode definir classe média da forma como está sendo definida pela pesquisa da Fundação Getúlio Vargas. Na realidade, o estudo definiu o extrato econômico médio da População Economicamente Ativa (PEA) e, não, a classe média. As classes não se definem como uma conseqüência do crescimento econômico ou de salários, mas como a posição que cada uma ocupa dentro da estrutura e da distribuição da riqueza social. Parece paradoxal, mas pode haver distribuição de riqueza antes dela ser produzida.

Na prática, como isso ocorre?

O Brasil Colônia é um exemplo. Quando o Brasil começou a ser colonizado já estava definido, a priori, quem seriam os donos da riqueza: os senhores de engenho; e os não-donos, os escravos e os trabalhadores. Assim, as classes sociais são definidas, a partir da propriedade que elas têm sobre os meios de produção. Mas a ascensão da classe média apresentada pela pesquisa relaciona o aumento da oferta do emprego formal...

A pesquisa tem um viés ideológico muito forte: tentar fazer do Brasil uma ilha de prosperidade. As mesmas caras de fome, de marginalidade social e de miséria continuam; em alguns casos, até pioraram. Há também um deslize técnico. Como a pesquisa trabalhou com o conceito de PEA, o corte englobou pessoas entre 15 e 65 anos, incluindo banqueiros, assalariados e autônomos. Há uma diversidade muito grande de pessoas neste intervalo, definido como classe média, e isso não pode.

Por quê?

O salário mínimo real deveria ser, hoje, de R$ 2 mil, e a pesquisa define a classe média a partir de R$ 1.000. Que classe média tão pobre é esta? Um trabalhador autônomo, uma manicure, ganha R$ 1 mil por mês. Isso é classe média?

O aumento de pessoas na classe média significa diminuição da pobreza?

É preciso esclarecer que a distribuição de renda no País não melhorou. Ela é medida pela divisão entre aqueles que vivem de salários e os que não são assalariados, sendo mensurada a partir das contas nacionais, feitas anualmente. Em 1980, a classe que vivia de salário, se apropriava de 50% da riqueza nacional, hoje, de apenas de 39%. Quem não vive de salários, mas de lucro, juro e de poupança, aumentou sua participação de 50% para 60%. Onde está a distribuição de renda tão falada? A desigualdade de rendimento dentro da classe trabalhadora apenas diminuiu, mas não houve distribuição entre capital e trabalho. Em termos de distribuição de renda, o Brasil está pior do que há 30 anos.

Mas houve uma melhora nas condições de vida da população?

Houve um arremedo de melhora nos rendimentos dos assalariados; e quem não tinha nenhum rendimento, passou a contar com o Bolsa Família. Outro fator que deve ser considerado é o crescimento real do salário mínimo. A Constituição de 1988 estabeleceu como teto base de aposentadoria um salário mínimo e criou a Lei Orgânica de Assistência Social (Loas). Essas pessoas vivem, agora, com um salário mínimo que cresceu, substancialmente. Quem está acima de quatro salários mínimos, piorou de vida.

Como isso se apresenta na realidade?

Basta somar o número de pessoas que têm mais de um emprego para poder manter o padrão de vida, aposentados que estão trabalhando e o número de crianças abaixo de 14 anos no mercado de trabalho, que totalizam mais de 10 milhões. A agonia, o aperto, a fome e a miséria não estão tão fortes como antes, foram amenizadas. Mas, quem era pobre continua pobre, e quem era rico, continua rico.

O aumento do consumo pode camuflar a realidade, ou seja, as pessoas estarem mais endividadas?

Pode, pode. Aliás, não é só no Brasil, o consumo é um fenômeno mundial. O seu crescimento se dá via aumento da dívida, não pública, mas da família através de crediários e prazos mais longos. A classe média vive num processo de endividamento de cinco, seis e até 30 anos, dependendo do bem que adquirido.

A carteira assinada continua sendo o símbolo da classe média?

O Brasil gera por ano 1,8 milhão de empregos. No entanto, todos os anos, chegam ao mercado 2 milhões de pessoas em busca do primeiro emprego. Quer dizer, o número de postos gerados não absorve o contingente de desempregados do País, que deve ter atualmente, entre 10 e 15 milhões de desempregados.

Existe um conceito único de classe média ou varia de sociedade para sociedade?

Além do capitalista, do trabalhador assalariado e do proprietário de terra, existe um contingente de pessoas que está no serviço e no comércio, mas não é propriamente assalariado ou proprietário. Estes segmentos formam a classe média.

Historicamente, como ela se firmou?

Com o desenvolvimento do capitalismo foi criado um setor de comércio forte, que exigia um estado cada vez maior, que precisava de elevado número de funcionários para atender às necessidades da economia. A classe média é o resultado da expansão e desenvolvimento do capitalismo. Um exemplo foi a opção feita pelo governo, ao adotar o transporte individual, ao invés do coletivo. Quando Juscelino Kubistcheck lançou o desafio de fazer o País crescer 50 anos em cinco, criando a indústria automobilística, não pensou no transporte de massa, mas individual. Isso significa que já existia uma classe média no Brasil, nos anos 1950.

A classe média surge no contexto da modernidade?

A classe média é um produto da modernidade, criada a partir da expansão e desenvolvimento do capitalismo. Ela está agonizando, financeiramente, mas existe. Basta ver os engarrafamentos dos centros urbanos do País, para provar que temos uma classe média muito forte.

Ela estaria vivendo no mundo do faz-de-conta?

Historicamente, a classe média viveu assim. É astronômica a divisão entre renda disponível e o endividamento. Em 1929, por exemplo, esta relação variava entre 40% e 50%. Hoje, é mais de 50%, já que o endividamento é uma tendência mundial.

Atualmente, quais são os símbolos da classe média?

Os shopping centers, o carro do ano, o tênis da moda, as roupas de grife, além do conservadorismo político. Ela deseja casa própria e um bom padrão de vida, como viajar e lazer. Agora, quem ganha R$ 1 mil não pode viajar.

Pela pesquisa, a linha que separa a classe média da pobreza é muito tênue...

O intervalo medido é muito grande, uma vez que a pesquisa analisou quem ganha entre R$ 1 mil a R$ 4 mil. Quando se fala em classe média, há um efeito ideológico muito forte. O que a gente observa é como os números são utilizados. Há 10 anos, eram usados para satanizar o liberalismo. Continuamos com a mesma política neoliberal e, agora, são utilizados com o fim de justificar o governo atual. A violência e a marginalidade social aumentaram no Brasil.

Uma das características da classe média é a fé no futuro. Como o senhor avalia este comportamento, no contexto atual do mundo do trabalho, cada vez mais incerto?

Os pais da classe média pensavam mais ou menos assim: meu filho quando crescer, vai trabalhar no Banco do Brasil, ser médio ou engenheiro. O Banco do Brasil acabou e o médico virou assalariado, o que significa dizer que os sonhos da classe média acabaram. O próprio Ministério do Trabalho acabou com o conceito de emprego. Hoje, o que existe é uma estabilidade enorme e o mercado de trabalho se tornou extremamente instável.

A classe média retrata bem o ´jeitinho´ brasileiro?

A classe média é uma mentira bem bolada que pegou. As pessoas têm vergonha de dizer quanto ganham e até de carregar pacote na rua devido à nossa herança colonial. As novelas refletem bem o que é a classe média brasileira.

Quando a classe média se firmou no País?

Por volta dos anos 1930, aliás, no Brasil imperial já existia um começo de classe média. Machado de Assis era um funcionário público, bem remunerado, que viveu no século XIX e fazia parte da classe média, assim como José de Alencar. No Brasil, como sempre, o estado foi inchado, patrimonialista, baseado no favoritismo, no pistolão, portanto, tinha mais trabalhadores do que o necessário. Isso contribuiu para o surgimento de uma classe média. Obviamente, que esta realidade era no Brasil colonial e imperial, hoje, há necessidade de funcionários e não tem. O número de funcionários públicos não chega a 10% do total de empregados brasileiros.

Os programas sociais estancaram a pobreza?

Há uma década ou até antes, quando chegavam os meses de fevereiro e março, e não chovia, Fortaleza era invadida por pessoas vindas do Interior. Com o Bolsa Família e o Funrural, o sertanejo fica no campo e não saqueia mais o comércio.

Caso a pesquisa refletisse a realidade, quais as implicações para o governo?

Significaria mais responsabilidade para o governo. A economia cresceu a uma taxa de 4,5%, o emprego aumentou, o salário mínimo real cresceu, mas nada que mudasse as feições estruturais do País. Aliás estamos voltando para um Brasil colonial, de grandes plantações de soja, mamona, cana-de-açúcar. Falta uma política industrial forte no País.

Como o senhor analisa esta volta da inflação que começa a ser sentida pelo aumento nos preços dos alimentos?

Primeiro, a inflação é, hoje, um fenômeno mundial. O petróleo subiu, substancialmente, sendo um insumo que entra em quase todos os produtos consumidos no mundo, principalmente os agrícolas. O custo do petróleo eleva o custo destes produtos. A produção de milho e soja, para ser utilizada com fins energéticos, está tomando espaço, antes, reservado à produção de alimentos. Países que, antes, eram auto-suficientes na produção de alimentos, atualmente, estão totalmente dependentes do mercado internacional.

Como o senhor analisa o atual quadro socioeconômico do Brasil e quais as perspectivas?

Até 1970, foi possível conciliar crescimento econômico com aumento de emprego, direitos sociais e trabalhistas e criação do estado de bem-estar social. De 1970 para cá, entramos na fase do crescimento pelo crescimento. No mundo todo, há um desmantelamento das estruturas do estado de bem-estar social, como foi o caso também do Brasil, que começou a desestruturação nas décadas de 1980 e 1990. A saída seria uma opção política por um projeto de nação, mas é preciso forças sociais e partidos políticos fortes, com projetos ideológicos bem definidos. Os partidos políticos perderam a sua identidade ideológica e todos falam o mesmo discurso, e os políticos têm projetos individuais. Acho que a esperança está nos movimentos sociais.

Iracema Sales
Repórter