Moraes Moreira deixa importante legado para as artes e forte ligação com o Ceará

Dono de uma trajetória única na história da música brasileira, o cantor, compositor e escritor morre aos 72 anos de idade deixando uma marca impagável: cantar os muitos brasis

Escrito por Antonio Laudenir , laudenir.oliveira@svm.com.br
Legenda: Em 2010, o cantor foi homenageado no programa Som Brasil
Foto: TV Globo / Zé Paulo Cardeal

A arte brasileira perde uma mente notável. Moraes Moreira saiu de cena aos 72 anos de idade. Construiu legado irretocável munido de voz, violão e poesia. O baiano cantou as muitas realidades, cores, simbologias e batucadas desse País de gente bronzeada. O gosto deste caldeirão musical guarda temperos urbanos e sertanejos. Com os Novos Baianos ou na carreira solo foi Carnaval, samba, rock, pop, acústico e elétrico. Do rádio ao terreiro. 

Partiu em silêncio, enquanto dormia. Morreu em casa, no bairro carioca da Gávea. Infarto agudo do miocárdio apontaram os familiares. Um destino que em nada combina com a prolífera produção dos últimos anos. A derradeira mensagem publicada nas redes sociais foi das mais generosas. No dia 18 de março, enquanto cumpria o isolamento social por conta da Covid –19, disse estar “tocando e escrevendo sem parar”. Dividiu com o público uma de suas paixões, um cordel intitulado “Quarentena”.

A história de Antônio Carlos Moreira Pires nasce em Ituaçu, município cravado na Chapada Diamantina baiana. Naquele chão se encantou pelo som dos seresteiros. Quando via uma banda de música, corria atrás. Por ocasião dos 70 anos de idade (destes, 46 só de labuta no Carnaval) disse em entrevista ao programa “Aprovado” o quanto a tuba e imponência do maestro lhe cativaram. 

O rádio ainda engatinhava. Existiam apenas três aparelhos na cidade e olhe lá. Com a chegada do alto-falante, outro universo irrompe. Quem conhece histórias ou viveu no interior, sabe da importância deste equipamento. Irradiando músicas e notícias, trata de tradição fundamentada na oralidade e nos valores culturais da comunidade. Do som que saia dos postes ouvia de tudo. Luiz Gonzaga (1912-1989) e Jackson do Pandeiro (1991-1982). De Ângela Maria (1929-2018) a Orlando Silva (1915-1978). 

Amigo cearense

Os anos se passaram, já reconhecido pelos feitos ao lado dos colegas de Novos Baianos (Baby do Brasil, Paulinho Boca de Cantor, Pepeu Gomes e Luiz Galvão), a memória dos alto-falantes o aproximou de um cearense bom de letras e desenhos. Uma amizade e parceria musical com mais de quatro décadas. Fausto Nilo contou o encontro antes de um show com o amigo em Quixeramobim. 

“Estou na casa de um amigo, o jogador Afonsinho, craque revolucionário que se revelou contra a malvadeza dos jogadores. De maneira informal começamos a conversar. Descobrimos uma coisa em comum, éramos de duas cidades sertanejas, eu do Ceará e ele da Bahia. Conversamos sobre o alto-falante, Orlando Silva, Dalva de Oliveira, essas conversas.”
 

Legenda: O baiano ao lado do amigo cearense e parceiro musical Fausto Nilo, no último show em Fortaleza, no Cineteatro São Luiz, em 2019
Foto: Guilherme Silva

Ambos criaram pérolas como “Prosando com Maria”, “Meninas do Brasil”, “Santa fé”, “Lua de papel”, “Coisa Acesa”, “Bateu no Paladar” e “Pão e Poesia”. Composições que continuam vivas no imaginário do povo brasileiro. Na manhã de segunda-feira, bastante abatido, Fausto Nilo gentilmente dividiu com o Verso um pouco da profunda história de amizade. 

“Ele me ajudou num período difícil, o da ressaca da ditadura, que foi quando a gente começou a trabalhar. Pessoalmente, eu tive muito proveito disso, considero que fui muito beneficiado”, resgata o cearense. O último dedo de prosa entre os amigos aconteceu no sábado (11). Como era de costume, o telefonema foi longo. 

As obras compostas com Moraes são orgulho para Fausto. “São canções de muita atualidade. ‘Meninas do Brasil’, por exemplo, serve para os dias atuais e graças a ele que me ajudou com isso, com uma melodia maravilhosa." Para Fausto, o criador dos Novos Baianos foi “um dos mais criativos parceiros que eu já tive. Uma pessoa que a toda hora estava com um violão, tentando alguma coisa e com muita liberdade e ousadia”, completou. 

A dobradinha entre Fausto e Moraes repercutiu em um dos momentos mais felizes na trajetória do Bloco de Carnaval Luxo da Aldeia, de Fortaleza. Foram três apresentações conjuntas com o baiano, além da gravação em disco da inédita “Lua de Papel”. “Foi referência forte e formadora. Tanto na sonoridade da banda como na questão de valores, como vemos o Carnaval e acreditamos que seja. O Carnaval popular, do povo na rua. Essa história de vida e toda a obra foram referências em nossa vida”, avalia o músico Mateus Perdigão.

Trajetória

Com 19 anos, Moraes Moreira mudou-se para Salvador com o intuito de fazer Medicina, mas acabou por estudar música no Seminário de Música da Universidade Federal da Bahia. Na pensão em que morava conheceu os futuros parceiros Paulinho Boca de Cantor e Luiz Galvão. É Galvão quem apresenta Moraes a Tom Zé. Um mestre para toda a vida. Em 2017, a canção “Obrigado Tom Zé” falou por si só. Os amigos da casa começam a elaborar o espetáculo de estreia do Novos Baianos, intitulado “O Desembarque dos Bichos depois do Dilúvio Universal”, em 1968. A apresentação também contava com a cantora Baby Consuelo (atual Baby do Brasil) e o guitarrista Pepeu Gomes. 

Legenda: Moraes na ponta direita com os Novos Baianos nos anos 1970
Foto: Divulgação

Juntos nessa nova formação, o grupo parte para São Paulo a fim de participar do V Festival da Música Popular Brasileira, defendendo a música “De Vera”, de Moraes Moreira, com letra de Galvão, de quem se torna parceiro frequente. 

Em seguida, os Novos Baianos lançam o primeiro disco, “Ferro na Boneca”. Em 1972, chegaria ao público o antológico “Acabou Chorare”, com mais de 100 mil cópias vendidas e apontado pela revista Rolling Stone Brasil como o melhor disco da história da música brasileira – eleito com esse título numa lista de 2007. 

Ao seguir carreira solo, a partir de 1975, Moraes contou com o guitarrista Armandinho, seu primeiro parceiro nessa nova fase. Nesse movimento, toca com o trio elétrico de Dodô e Osmar (pai de Armandinho) em 1976, sendo o primeiro cantor de trio elétrico. Fez grande sucesso com a marchinha “Pombo Correio”, parceria com Dodô e Osmar. 

O menino de Ituaçu, cuja devoção pelas ondas sonoras o fez descobrir outros mundos, viveu gloriosos 72 anos. Quis ele que sua música fosse motivo de candura e transformação. Transmissão de paz, alegria e reflexão. A voz e as cordas do violão de Moraes Moreira estão eternizadas. Se unem às dos mestres que ele ouvia nos alto-falantes da infância.

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