A primeira semana do Big Brother Brasil 22 apresentou um bom panorama do que vamos acompanhar ao longo da exibição do reality. Desde o perfil dos participantes até as reações do público, muitas foram as emoções já vivenciadas.
Há outro componente tão importante quanto: a efervescência de temas sociais discutidos ou vivenciados na casa, seguindo a tendência das mais recentes edições do programa. Racismo, gordofobia, exposição de imagens íntimas, desrespeito à travestilidade, entre outros, furaram a bolha do confinamento e estão ressoando aqui fora.
Neuropsicóloga clínica, Mestra em Ciências Médicas e coordenadora do curso de Pós-graduação em Neuropsicologia Clínica Comportamental do Instituto Brasiliense de Análise do Comportamento (IBAC), Amanda Barroso considera que, quanto mais falamos sobre algo considerado “tabu”, mais abrimos espaço para discussão, compreensão e clareza.
“Ter essas questões discutidas em um reality assistido por milhões de brasileiros favorece, inclusive, falar sobre isso em casa, com quem pode estar sofrendo preconceitos diariamente. Pode ser um momento para relatar sobre como se sente ou para perceber se está vivendo algum tipo de opressão, se for o caso”, analisa a estudiosa.
Diante do aumento do número de seguidores dos participantes antes mesmo de o reality começar, Amanda observa que os assuntos surgidos na atração deverão trazer discussões nas redes sociais também. “Acredito que essa adesão se relaciona à maior possibilidade de participação de quem está assistindo, que deixa de ser apenas um espectador e passa a ser ativo no processo de escolha em relação a várias coisas que acontecem dentro da casa”.
Além disso, o estudo do marketing aplicado ao comportamento humano – na forma como o programa elabora provas mais atrativas e escolhe participantes com determinadas características, por exemplo – aproxima o telespectador dos confinados, do uso das redes sociais, da análise das reações do público, dentre outros. Essas podem ser estratégias pensadas para aumentar o engajamento a cada edição.
Desenvolvimento da empatia
Ultrapassando a perspectiva mercadológica, o sentimento de empatia ao dar-se de cara com situações e realidades muitas vezes distantes do cotidiano de milhões de pessoas é outro ponto merecedor de destaque. De acordo com Amanda, esse olhar esmerado para o outro é algo que aprendemos na convivência em sociedade desde a infância.
“No cérebro, a base biológica que dá suporte à empatia são os chamados ‘neurônios-espelho’, relacionados ao comportamento por imitação. Assim, a empatia está ligada à capacidade de ‘ver com os olhos’ do outro, e, dessa forma, somos capazes de ‘prever’/‘ler’ o que o outro estava pensando/sentindo, facilitando a comunicação e as relações com as demais pessoas”.
Não apenas na contemporaneidade, mas sempre, é fundamental que o ser humano possa entender de que maneira o próprio comportamento afeta e é afetado pelo outro. Uma pessoa que não se sente acolhida ou alguém que sofre violência física/psicológica tem sérias consequências para toda a vida, podendo refletir nos relacionamentos, estudos, trabalho e na conduta com terceiros.
Amanda salienta ainda a existência de diversos estudos sobre crianças que sofrem negligências/abusos na primeira infância. Elas apresentam alterações, inclusive cerebrais, além de danos emocionais e sociais irreparáveis. “Assim, a empatia tem papel fundamental para que as pessoas, ao se colocarem no lugar do outro, não cometam comportamentos abusivos”, sublinha a neuropsicóloga.
Sob outra esfera, quando questionada se a temática da saúde mental também poderá ser discutida no BBB nesta edição, a pesquisadora não apenas acredita como espera que sim. “Saúde mental também costuma ser um tabu. Muita gente tem vergonha de dizer que vai ao psiquiatra ou ao psicólogo. ‘Psicofobia’ é o termo usado referente à discriminação contra pessoas com transtornos mentais. O próprio nome ‘transtorno’ deveria ser substituído, pois acredito que contribui para o preconceito”.
A bem da verdade, ao falarmos em saúde mental estamos considerando habilidades e o bem-estar das pessoas, e não o contrário – como costuma ser associado. Inclusive, por estar relacionado a um bem-estar geral, poderia até perder o termo “mental”, tendo em vista que a cabeça/cérebro faz parte do corpo. Logo, por que separar os dois?
“Acompanhar o BBB pode ser visto como uma forma de se distrair da realidade que tanto nos apavora – podendo ser, inclusive, uma fuga dessa realidade. Para um ‘reality’ (que significa ‘realidade’), está um pouco diferente do que está acontecendo aqui fora. Na casa, todos estão protegidos da Covid-19 e não precisam lidar com esse medo de quem está vivendo no mundo. Então, assistir é meio que se desligar um pouco de tudo que está acontecendo”, afirma.
“Por ser um programa de grande repercussão em uma emissora ‘de nome’, acredito que trazer temáticas adormecidas pode ampliar a discussão para o público em geral – cada vez mais participativo – e promover reflexões”.
Do racismo à gordofobia, passando pela travestilidade e o direito da mulher diante da exposição de fotos íntimas, a seguir você confere a opinião de especialistas em cada uma das temáticas discutidas no BBB22 durante a primeira semana de exibição do programa.
Gordofobia
Ver a explicação da Gordofobia em um programa de rede nacional foi um presente dessa edição. Tiago Abravanel pontuou pautas muito importantes, como acessibilidade, a indústria da moda e o corpo gordo, saúde e gordofobia, ensinando para os outros confinados – os quais a maioria tem um corpo padrão – um olhar diferente sobre a diversidade dos corpos.
A importância de termos esse assunto chegando em cada vez mais pessoas é entender que a pessoa gorda merece ser respeitada, não associando-a ao fracasso, preguiça, desleixo, entre tantas outras formas de desrespeito àquele corpo. Discutir também sobre a acessibilidade dessas pessoas – seja no transporte público, seja em restaurantes e bares ou hospitais – e normalizar o adjetivo gordo como qualquer outro, não mais como uma ofensa.
Nós, que estamos nas redes sociais falando sobre isso diariamente, aproveitamos esse momento para falar ainda mais e explicar algumas dúvidas que surgem no processo. Ver nossa pauta sendo pelo menos introduzida para tantas pessoas nos fortalece em saber que esse olhar empático pode surgir, que os nossos direitos serão respeitados e que nossos corpos podem ser vividos em todos os espaços.
Flora Mota, médica
Travestilidade
O Big Brother Brasil, na sua 22ª edição, vem trazendo alguns debates que precisamos observar. Na minha cabeça, não são debates novos, são assuntos que já estávamos discutindo enquanto sujeitas e sujeitos, como por exemplo a travestilidade. De entender a travestilidade como categoria identitária que não se enquadra numa lógica ocidental de gênero, do que seria feminino ou masculino; mas a travestilidade como uma categoria identitária própria do Brasil.
Entender a travestilidade é também compreender as pessoas que a vivenciam. Linn da Quebrada traz esse debate quando diz: “Nem sou mulher, nem sou homem, sou travesti”, reivindicando uma categoria política e identitária num país onde essas pessoas são assassinadas diariamente por se reivindicar travestis.
Assim, o debate que temos hoje é que, pela primeira vez nesse programa, há a representação de uma travesti, que reivindica o lugar da travestilidade e que está trazendo esse diálogo à tona como debate público. Do mesmo modo, é igualmente importante entender que esses sujeitos e essas sujeitas passam também por um processo de exclusão social, de discriminação, de violência. Essa categoria ainda está à margem.
Eu, enquanto ativista e estudiosa de gênero, travesti negra e nordestina, como Linn, acho que é o momento propício para descortinarmos o preconceito e ressignificarmos essas violências. Transformar o luto que nós, ativistas travestis, enfrentamos cotidianamente, em luta. E também entender de que forma observar os próximos dias, de que modo a sociedade brasileira vai enxergar essa travesti que é a Linn da Quebrada – uma artista que demarca esse espaço da travestilidade. Acredito que seja algo importante, a perspectiva de humanizar essa categoria.
Logo, Linn da Quebrada tem um papel muito doloroso, de trazer as próprias experiências enquanto sujeita travesti para humanizar e trazer esse debate público de toda uma categoria historicamente marginalizada. Esse é um dos desafios da participação dela, uma travesti negra, no programa: descortinar debates esquecidos no cotidiano. E mostrar o quanto esses sujeitos precisam ser reconhecidos como humanos na nossa sociedade, enquanto pessoas, sujeitos de direito, cidadãos e cidadãs.
O simples exercício de reivindicar o tratamento no gênero feminino já é um debate que nós, travestis e transexuais, enfrentamos fora da casa do BBB todos os dias. Enfrentamos também a violência de todas as formas, o preconceito, a discriminação. Lutamos por vida, por sobrevivência. Essa é a centralidade do debate.
Dediane Souza, travesti, preta, jornalista e mestranda em Antropologia
Racismo
Tenho observado que, nas últimas edições do BBB, a questão racial tem ganhado destaque, certamente pela presença de mais pessoas negras no reality. Por um lado, parece muito inovador e avançado a sociedade – ou os espectadores do reality, pelo menos – sendo provocada a tratar, ora do comportamento racista de algum participante, ora do protagonismo de um negro ou negra que, de dentro da casa, fala com propriedade sobre ser preto/preta.
Digo que parece muito avançado, mas, como tudo o que é produzido dentro de um reality show, não é necessariamente racional. Porque, no mais das vezes, a grande provocação para o público é meramente emocional ou induzida por sentimentos imediatos ou senso comum. Tanto é verdade que negros foram eliminados do programa sem que possamos afirmar que foram por causa disso vítimas de racismo, mas há evidencias de que o julgamento sobre os mesmos são bem mais rigorosos que sobre os demais, como foi o caso de Karol Conká. Acho que ter mais negros, pessoas LGBTQ+ no programa – como agora tem uma travesti – pode refletir a compreensão dos diretores da atração sobre como a presença dessas pessoas é quantitativamente significativa na sociedade.
Mas não acho que do reality saia um debate capaz de enfrentar o racismo de forma abrangente. Até mesmo porque, nessa edição, temos visto que não basta ser negro ou negra para tratar a questão racial de forma honesta e consequente, como é o caso da participante Natália Deodato – que se referiu à escravização de africanos com equívocos imperdoáveis. Ótimo seria se a questão racial refletisse mais na presença de negros como protagonistas nas novelas, na publicidade, como ícones da grande programação da televisão, não apenas como participantes de reality show, cuja finalidade é só entretenimento.
Martír Silva, advogada, professora do curso de Direito das Faculdades Cearenses (FAC), atualmente coordenadora especial de políticas públicas de promoção da igualdade racial do Governo do Estado do Ceará
Direitos da mulher diante da exposição de fotos íntimas
Essa semana nos deparamos mais uma vez com o crime de exposição de fotos íntimas de uma mulher na internet. A vítima dessa vez foi a participante do reality show Big Brother Brasil, Natália Deodato. No momento da exposição, a grande maioria das pessoas fica sem saber o que fazer, além de se sentir culpada. O que as vítimas precisam ter consciência é exatamente da sua condição de vítima nesse crime, chamado crime de pornografia de vingança – tipificado pela Lei nº 13.718/2018, punível com pena de reclusão de 1 a 5 anos, se o fato não constituir crime mais grave. Por isso é tão importante sempre trazermos esse tema para os mais variados locais de debate e proliferarmos as informações sempre que possível.
É importante dizer também que, embora esse crime possa acontecer com pessoas de todos os gêneros, infelizmente a maioria das vítimas são mulheres, historicamente coisificadas e cuja sexualidade é tratada de maneira diferente, tornando-as um alvo fácil. Portanto, necessitam receber maior acolhimento e ter acesso a políticas públicas direcionadas para a sua proteção.
Outro fato relevante nessa situação é a condição de mulher negra de Natália Deodato. Uma pesquisa realizada em 2017 pela Universidade Federal da Bahia mostrou que as mulheres negras sofreram 73% dos casos de violência sexual registrados no Brasil, enquanto as mulheres brancas foram vítimas em 12,8%. É óbvio que as interseções entre racismo e machismo enquanto matrizes de opressão hiper vulnerabilizam os nossos corpos. A reprodução dessas estruturas deixa os agressores mais “confortáveis” para cometer violências relacionadas à dignidade sexual das mulheres negras.
Olga Loiola, Comissão da Mulher Advogada da OAB-CE.
Raquel Andrade, Presidenta da Comissão da Promoção da Igualdade Racial da OAB-CE