De um partido que integrava a base governista no Ceará e em Fortaleza, possuía 13 prefeitos eleitos e dominava a Região Metropolitana da Capital para um partido que tem apenas dois prefeitos exercendo mandato e faz uma radical oposição ao Governo do Estado e à gestão da Capital. Quatro anos separam esses dois cenários, mas a descrição é sobre a mesma sigla: o Partido Liberal (PL).
A legenda, atualmente comandada pelo deputado estadual Carmelo Neto (PL), passou por uma profunda transformação tanto na conjuntura nacional quanto local desde 2021, quando o ex-presidente Jair Bolsonaro se filiou a ela.
Desde então, o pragmatismo, que dava o tom da sigla e era base do crescimento do partido, foi dando lugar a uma fiel ideologia bolsonarista, que sustenta a sigla pela influência do ex-presidente e da ampla bancada no Congresso Nacional. Para o pleito deste ano, o plano dos dirigentes nacionais da legenda é ampliar a base municipalista, elegendo prefeitos e vereadores. Contudo, ao menos no Ceará, a estratégia eleitoral passa longe daquela aplicada em 2020.
“O PL, em 2020, era um partido que estava dentro da base do governo Camilo Santana, fazia parte da sustentação do governo do PT no Estado. A partir de 2022, com a entrada do presidente Bolsonaro, o PL se posicionou fortemente contra o PT, recebeu muita gente, muita filiação e, claro, o PL tem lado, que é seguir a liderança do presidente Bolsonaro e se opor ao PT em qualquer cidade do país”, analisa o presidente do PL Ceará, Carmelo Neto.
O que era o PL Ceará em 2020
Sem grande tradição na política cearense, o PL Ceará só começa a ter mais expressividade quando o prefeito do Eusébio, Acilon Gonçalves, assume o comando da sigla em 2019. Influente político da Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), ele já foi vereador da Capital e deputado estadual.
O PL Ceará nunca foi um partido que comportou, no seu interior, um nome forte da política cearense, era o centrão da política cearense, mas muito pequeno. E o Acilon é quando, de fato, você tem um líder político de peso considerável e, mais do que isso, tem um projeto político de expansão e de construção de uma certa hegemonia na Região Metropolitana de Fortaleza. O Acilon foi quem deu uma cara de projeto político à sigla partidária, que era o projeto político da sua liderança em busca de se cacifar no jogo político estadual.
É em 2020 que Acilon mostra, comandando o PL, sua força como liderança regional. À época, ele, que era considerado aliado de primeira ordem do grupo Ferreira Gomes, conseguiu se reeleger como chefe do Executivo do Eusébio e, mais que isso, ajudou a eleger ao menos cinco aliados em prefeituras do entorno da Capital — e oito em outras regiões do Estado.
Em Aquiraz, os eleitores deram vitória a Bruno Gonçalves, filho de Acilon. Os prefeitos de Itaitinga, Paulo César Feitosa; Beberibe, Michele Queiroz; e Pindoretama, Dedé Soldado, também estavam na lista de aliados do prefeito de Eusébio. Além desse grupo, o PL ainda elegeu naquele ano mandatários para as prefeituras de Baturité, Cariús, Choró, Milhã, Miraíma, Mulungu, Nova Russas e Santana do Acaraú.
A chegada de Bolsonaro e de seus aliados
Se, à época, a liderança do prefeito do Eusébio chamava a atenção, tudo mudou em novembro de 2021, quando o então presidente Jair Bolsonaro se filiou ao PL. No Ceará, vários apoiadores do ex-presidente se filiaram à legenda com a expectativa de disputar a eleição de 2022. Foi o caso do deputado federal André Fernandes, à época deputado estadual; e do deputado estadual Carmelo Neto, então vereador.
Essa movimentação ampliou os números da bancada do PL na Capital. Em 2020, foram eleitos dois vereadores pela sigla. Em 2022, após a janela partidária, o partido tinha seis vereadores ativos — atualmente são quatro.
Por outro lado, isso emparedou Acilon, que precisou sair da base do Governo do Ceará para minimizar a pressão dos bolsonaristas na pré-campanha de 2022. À época, aliados do então presidente investiram para tomar o comando da sigla, mas, inicialmente, sem sucesso.
“Nacionalmente, vem um movimento verticalizado que é a entrada do Bolsonaro no partido e, consequentemente, a filiação dos bolsonaristas aqui no Ceará, isso faz com que o projeto se converta no partido de Bolsonaro para as eleições de 2022. Mesmo com a derrota do presidente, mas com sucesso eleitoral no Congresso Nacional, o partido se converte em uma produção de imagem-marca de um 'partido do Bolsonaro', porque o Bolsonaro tem liderança, assim como o Lula tem liderança, tem eleitorado, tem uma massa, mas faltava uma coisa que era uma agremiação para chamar de sua, então essa parece ter sido a função que o PL exerceu”
Eleições 2022 e as crises
Ainda sob o comando de Acilon, que embarcou na campanha por Bolsonaro no Ceará, o PL chegou às eleições de 2022 com uma divisão clara entre os quadros mais ligados ao prefeito do Eusébio e ao grupo bolsonarista. Durante a eleição de outubro, por exemplo, apenas dois dos cinco federais eleitos ou reeleitos pelo partido no Ceará abraçaram a campanha pela reeleição do então presidente durante o primeiro turno: André Fernandes e Dr. Jaziel. Os outros três, Júnior Mano, Matheus Noronha e Yury do Paredão — expulso do partido em 2023 após se aliar ao PT —, só tornaram público o apoio nas redes sociais na corrida do segundo turno.
Ainda assim, a ala mais fiel ao ex-presidente da República saiu fortalecida. Carmelo Neto tornou-se o deputado estadual mais votado, já André Fernandes foi o deputado federal com melhor desempenho no Ceará. A sigla chegou a cinco nomes na Câmara dos Deputados e quatro na Alece.
Nacionalmente, o PL elegeu a maior bancada da Câmara dos Deputados e do Senado, totalizando 99 deputados federais e 14 senadores. Os números no Congresso são decisivos, já que são usados como base de cálculo dos recursos de financiamento de campanha e de tempo de propaganda eleitoral gratuita.
No Ceará, as crises não pararam. Um dos episódios que gerou desgaste para Acilon com a outra ala do PL no Ceará e em Brasília foi a cassação da chapa de deputados estaduais da sigla pela Justiça Eleitoral. Em decisão histórica, o pleno do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará (TRE-CE) condenou toda a chapa estadual por fraude à cota de gênero nas eleições de 2022. O caso atualmente está no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), onde aguarda análise.
Saída de Acilon do comando e debandada de prefeitos
Com os desgastes acumulados e a pressão da ala bolsonarista, Acilon cedeu. Em novembro de 2023, o presidente nacional do PL, Valdemar Costa Neto, oficializou o deputado estadual Carmelo Neto como presidente do partido no Ceará após a renúncia de Acilon. O prefeito do Eusébio deixou a função alegando "divergências de entendimento com outros membros da sigla".
O político mantém-se no PL, mas seu enfraquecimento interno resultou em uma debandada de aliados. Dos 13 prefeitos eleitos pelo PL em 2020, apenas ele segue na sigla. Os outros migraram para legendas da base governista, incluindo PSB, PT, PP, PRD e Podemos. O prefeito de Itaitinga, Paulo César, que era aliado de Acilon, faleceu em agosto de 2022.
“Você teve um partido que estava em vias de expansão por um projeto político de uma liderança local e esse projeto de expansão é convertido em outro projeto de extensão que diz respeito a uma liderança nacional. Quando essa liderança nacional passa a mandar no partido, você passa a ter um partido no Ceará que não tem mais uma cara local como era a cara do Acilon, porque dentro do bolsonarismo há vários líderes e várias personas com pretensões à liderança”, acrescenta Emanuel Freitas.
A professora de Teoria Política da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Monalisa Torres, reforça que o PL oferecia a Bolsonaro e seus aliados o que eles buscavam: um abrigo partidário.
"O PL, assim como outras legendas, não tem uma trajetória de identificação a uma ideologia ou militância muito clara (...) o que é importante considerar quando a gente fala de partidos no Brasil e, mais especificamente, no Ceará. E o fato de não haver uma identidade, uma tradição histórica de militância, faz com que essas legendas acabem se tornando espaços de acomodação de lideranças que não encontram espaço maior de movimentação em outras siglas mais expressivas. Portanto, os políticos acabam tendo fidelidade muito mais a outras lideranças que eles seguem do que a partidos"
Eleições de 2024
Sob comando de Carmelo, o PL Ceará enveredou de vez para o bolsonarismo de olho nas eleições municipais deste ano. O grupo decidiu lançar como pré-candidato à Prefeitura de Fortaleza o nome do deputado federal André Fernandes. A nível estadual, Carmelo Neto e seus correligionários têm planos ambiciosos, que incluem deixar o partido ainda maior que o atingido com Acilon em 2020.
“O PL vai ter cerca de 20 candidatos majoritários aqui no Estado e a prioridade, claro, é eleger a maioria deles, esse é o nosso empenho e vamos trabalhar muito para isso. Nós temos a pré-candidatura do André Fernandes em Fortaleza, que está muito fortalecida, temos a Dr. Silvana, em Maracanaú, e o Coronel Aginaldo, em Caucaia, que são grandes cidades do Estado”
Na última semana, o político oficializou uma ameaça que fazia desde o ano passado: a de vetar alianças entre PL e PT em qualquer município cearense. O primeiro alvo da “canetada” de Carmelo foi o diretório de Ipueira, que teve a comissão provisória do PL dissolvida. Contudo, conforme mostrou o PontoPoder, correligionários do político estão articulando “jeitinhos” para contornar a decisão do dirigente partidário estadual.
Doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professora da Universidade de Fortaleza (Unifor), Mariana Dionísio pondera que essa tática inflexível da sigla pode ser uma barreira muito alta para a disputa municipal.
“Em termos práticos o PL tem sido menos estratégico, limitando seu arco eleitoral aos partidos que possuem correntes ideológicas semelhantes. O PL vem deixando de lado algo fundamental para a sobrevivência de uma sigla a longo prazo: quanto mais coligações, mesmo com legendas não tão alinhadas à direita, maiores são as chances de ampliar o alcance de eleitores. A imagem política do partido reflete essa constatação: ainda há uma preocupação determinante com temas como pautas de costumes e reforço continuado da polarização”, aponta.
A pesquisadora reforça que, no Estado, a disputa gira em torno de siglas com maior peso, como PT, PSB e PDT.
“Não que o PL esteja desidratado como partido, mas a forte vinculação à imagem do ex-presidente ainda exerce um considerável peso negativo na escolha. Nas eleições para deputado federal, deputado estadual ou composição do Senado, é possível falar em um PL fortalecido, mas o mesmo não se aplica à concorrência em nível municipal. O discurso da extrema-direita não tem tido adesão suficiente no contexto eleitoral da corrida pelo paço municipal, porque pautas de costumes não estão relacionadas, nem de longe, aos problemas reais enfrentados pelo cidadão comum”