Cinco pontos para entender a crise de articulação do Governo Lula com o Congresso Nacional

Parlamentares federais estão insatisfeitos com a relação com o Palácio do Planalto, o que tem refletido em votações difíceis dos projetos do Executivo

Apesar de ter sido assinada no dia 1º de janeiro de 2023, mesmo dia da posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a Medida Provisória que reformula a estrutura da Esplanada dos Ministérios só foi aprovada pelo Congresso Nacional horas antes de 'caducar', ou seja, perder a efetividade. O episódio é o último de uma sequência de votações difíceis enfrentadas pelo Governo Lula no parlamento e reflete um entrave no diálogo com parlamentares, inclusive aqueles que integram a base aliada. 

De um lado, deputados federais do Ceará indicam problemas na articulação política da gestão federal. O atraso no pagamento de emendas impositivas – que são indicadas pelos parlamentares e de execução obrigatória pelo governo federal –, a dificuldade de serem recebidos por ministros de Estado e mesmo o cumprimento de acordos firmados entre congressistas e Palácio do Planalto, incluindo a distribuição de cargos federais nos estados. 

Os problemas na articulação política do Governo Lula foram alvo, inclusive, de advertência do próprio presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL). 

"O governo sabe e tem consciência que a acomodação política não está feita. (...) Daqui para frente, o governo tem que andar com suas próprias pernas e não haverá nenhum tipo de sacrifício dos parlamentares", disse após a votação da MP dos Ministérios. 

Mas se o cenário de diálogo entre Executivo e Legislativo é difícil nesse início de mandato, ele não é inesperado. Esta é a análise de pesquisadoras entrevistadas pelo Diário do Nordeste, cujo foco é este acompanhamento das dinâmicas legislativas, inclusive na relação com o Palácio do Planalto. 

O perfil do Congresso Nacional, por exemplo, passou a ser ainda mais conservador após a eleição de 2022, com a maior bancada partidária pertencendo ao partido de oposição, o PL do ex-presidente Jair Bolsonaro. Por outro lado, a frente ampla formada por diversos partidos e lideranças políticas em apoio a candidatura de Lula no ano passado não garantiu adesão à base aliada do presidente no Congresso Nacional, pelo contrário. 

O Diário do Nordeste elencou cinco pontos importantes para entender os entraves encontrados pelo Governo Lula na relação com o Congresso Nacional:

Quais votações foram difíceis para o Governo Lula?

O presidente Lula minimizou entraves nesta relação entre Congresso e o governo. "Agora que começou o jogo. O que a gente não pode é se assustar com a política", disse no último dia 25 de maio. A publicação no Twitter ocorreu um dia depois de parlamentares modificarem a MP dos Ministérios – retirando responsabilidades das pastas de Meio Ambiente e de Povos Originários. 

Ele também se manifestou após a aprovação da mesma medida provisória, na última quarta-feira (31).

Contudo, os entraves de diálogo entre Congresso e governo têm resultado não apenas em demora na aprovação de projetos – como foi o caso da MP dos Ministérios –, mas também em derrotas nas votações. Em maio, a Câmara dos Deputados aprovou projeto que derruba trechos de dois decretos do Executivo que haviam flexibilizado o Marco Legal do Saneamento. 

Além disso, os deputados federais aprovaram medida provisória, editada pelo ex-presidente Bolsonaro, que flexibiliza ferramentas de controle do desmatamento na Mata Atlântica. A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, chegou a dizer que o presidente Lula irá vetar o texto. 

Já na última semana, a Câmara dos Deputados aprovou a PL do Marco Temporal, que restringe a demarcação de terras indígenas àquelas tradicionalmente ocupadas no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. O projeto é contrário à agenda do Governo e foi criticado por ministro, como a titular da pasta dos Povos Originários, Sonia Guajajara.

Outra bandeira levantada por Lula foi o projeto de lei que regula o funcionamento das plataformas digitais, mais conhecido como PL das Fake News. Apesar de ter conseguido aprovar o regime de urgência na Câmara, o projeto ainda não foi votado, porque ainda não há maioria pela aprovação. 

Vice-líder do bloco parlamentar formado por MDB, PSD, Republicanos, PSC e Podemos, o deputado Luiz Gastão (PSD) aponta que a Câmara dos Deputados "tem respondido" a "programas e projetos de estado", como a PEC da Transição ou o arcabouço fiscal – que foi aprovado por ampla maioria tanto por deputados como por senadores. 

"(Agora) As pautas do governo, pautas políticas e ideológicas, essas pautas terão que ser reconhecidamente discutidas com o Congresso. O congresso tem espectros de direita, de esquerda e centro. O governo quer pautas e projetos que dizem respeito à esquerda, mas o Congresso é prioritariamente de centro, e não vai apoiar", explica.

Líder do PDT na Câmara dos Deputados, André Figueiredo aponta que, em alguns projetos aprovados, como o arcabouço fiscal "não foi uma vitória do governo, foi uma vitória do parlamento", apesar da "insatisfação grande" que existe entre congressistas. 

Falta de "prestígio" dos parlamentares

A melhoria no relacionamento com os congressistas é quase consenso entre deputados cearenses ao serem indagados sobre os entraves na relação entre o Governo Lula e o Congresso Nacional. 

As reclamações – que, ressaltam os deputados, são generalizadas nas diferentes bancadas estaduais no legislativo – passam por "delicadezas", como caracteriza o deputado licenciado Eduardo Bismarck (PDT), coordenador da bancada cearense. 

"Os deputados tomando conhecimento da visita de ministros (aos estados dos parlamentares) pelas redes sociais. Nem são convidados para ir com a comitiva, nem para ir ao local (do evento), ficam sabendo depois da visita", relata. 

Tanto Bismarck como Eunício Oliveira (MDB) citam ainda a visita de Lula ao Ceará, em maio, quando houve dificuldade para que os parlamentares pudessem subir no palanque. "Era apenas para prestigiar o presidente, não era para falar (ao microfone)", afirma o emedebista. 

Outra reclamação frequente, citada pelos cearenses, são os "chás de cadeira" a que são submetidos deputados e senadores quando tentam ser recebidos por ministros do Governo Lula. "Esse desdém com que se trata o parlamento é motivo de muita reflexão", diz André Figueiredo. 

"A relação do governo com o Congresso é a pior possível, porque não existe diálogo e, quando existe, é sem nenhuma efetividade e com pouquíssimo respeito aos pleitos dos parlamentares". 
André Figueiredo
Deputado federal e líder do PDT na Câmara Federal

Dentre estes "pleitos" dos congressistas, está o pagamento das emendas impositivas – a qual cada parlamentar tem direito e que são de execução obrigatória. O deputado Luiz Gastão (PSD) reforça que existem demandas que "precisam andar mais rápido". 

Além das emendas, Gastão cita a demora na definição de nomes para cargos federais. Outros parlamentares cearenses também citam o problema. Bismarck, inclusive, fala da necessidade do "governo honrar alguns compromissos que fez para os cargos nos estados" e não passar "na frente pessoas que são até de oposição" nessas nomeações. 

Um dos exemplos citados tanto por Bismarck como por outros parlamentares cearenses foi o do ex-deputado Heitor Freire (União), eleito em 2018 na base de apoio do ex-presidente Jair Bolsonaro, e nomeado para a diretoria de Gestão de Fundos, Incentivos e Atração de Investimentos da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) em maio de 2023. 

"Quando você vê uma nomeação de um ex-deputado que era completamente oposição, realmente a gente não compreende exatamente quem está por detrás", diz o deputado Célio Studart (PSD), que cita a questão como uma "falha inicial, inaugural do governo do Lula de não estar sabendo distribuir esses cargos para formar uma base forte". 

Articulação política

Os deputados federais cearenses apontam uma "desorganização" na articulação política do Governo, o que estaria no cerne da dificuldade de diálogo entre Executivo e Legislativo, principalmente na Câmara dos Deputados, onde estes entraves têm tido as repercussões mais negativas. 

E esta articulação passa por três figuras. O líder do Governo na Câmara, deputado federal José Guimarães (PT), o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha (PT), e o ministro da Casa Civil, Rui Costa (PT). 

Este último é o que agrega maior número de críticas dos parlamentares. "O governo montou essa articulação mandando para a Casa Civil, que é burocrática, mais focada na gestão, e não na politica", argumenta Eunício Oliveira.

Para outros cearenses, o problema de Rui Costa é menos sobre a estrutura do Ministério e mais sobre as tratativas com os próprios parlamentares. "O Rui Costa não recebe ninguém", afirma Studart. André Figueiredo corrobora: "tem o ministro que se recusa a receber deputado, que é o Rui Costa". 

Ainda falando sobre os articuladores que integram a Esplanada dos Ministérios, as críticas a Padilha passam pela falta de efetividade na atuação do ministro. "Com o Padilha, existe essa dificuldade, porque os deputados até são recebidos. O Padilha colhe as demandas, mas não faz", afirma Studart. 

"É um ministro que é extremamente agradável, que recebe muito bem, mas que, infelizmente, toma nota e não resolve", afirma Figueiredo. Já sobre Guimarães, os parlamentares ressaltam que a articulação está sendo realizada, com "extrema boa vontade", mas que o próprio líder do Governo "encontra dificuldades dentro do Palácio do Planalto", diz Figueiredo. 

Para Eduardo Bismarck, falta à articulação política do Governo Lula "dividirem tarefa e não entrar na seara um do outro", o que ainda não ocorre, segundo o deputado. Eunício Oliveira considera que é necessário uma "mudança no plano de voo" na articulação política do governo, o que não é uma "defesa da queda de ninguém", ressalta. 

"Não é obrigado o presidente participar (da articulação política). Ele tem que ter pessoas que representem ele e não contra ele. Estão atrapalhando o Lula", argumenta Oliveira. Já para André Figueiredo, a "única saída" para melhorar a relação entre Congresso e Governo "é o presidente Lula se envolver diretamente". "Para apagar esse grande incêndio que se formou e fazer as modificações necessárias", diz.

Reflexos das eleições 2022

Socióloga e pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem-UFC), Paula Vieira aponta que existe uma dificuldade imposta a estes articuladores do Governo Lula, devido ao tamanho da oposição no legislativo federal. 

"Eles não têm tantos recursos assim, já que a oposição acaba sendo maior. Esses articuladores estão tentando ali movimentar os deputados que podem ser disputados, em relação ao Centrão", explica. Ela cita que com os deputados de partidos deste grupo - "muito móvel", como caracteriza - é possível negociações individuais, apesar de "o que presidente da Câmara tem a oferecer é mais interessante, nesse momento, do que o que o governo tem a oferecer", avalia. 

Sem um número fechado, as contagens extra-oficiais contabilizam cerca de 130 deputados federais na base aliada ao Governo Lula – entre os 513 parlamentares da Casa. Professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco e pesquisadora do Lepem, Gabriela Bezerra aponta que "sempre foi difícil compor base no Congresso Nacional, isso não é novo". "Talvez as novidades estão no tipo de dificuldades", explica. 

A primeira delas traz resquícios das eleições de 2022. Apoiado por uma "frente ampla" no 2º turno da disputa, Lula não viu este apoio eleitoral se reverter em alinhamento parlamentar. "Quem formou essa frente, não se colocou como fiel necessariamente ao governo, mas como parte de uma articulação democrática", aponta Vieira.

Portanto, não existe "uma fidelidade a qualquer custo", o que dificulta e "dá mais força àqueles que estão na oposição", afirma Vieira. 

Outros fatores são "o orçamento mais enxuto, o empoderamento de pautas reacionárias, a intensificação do poder da Mesa Diretora e mudanças internas institucionais nos dispositivos legislativos regimentais" no Congresso, cita Bezerra.

"Na última década, o PT teve que se concentrar na recuperação de sua imagem, o que pode ter afastado da compreensão das articulações no Congresso. Vamos ver quão rápida ou lenta será o aprendizado do Governo e do partido com relação a este cenário. Lembrando que no primeiro Governo Lula a mesma coisa aconteceu: a reorganização da articulação política só veio depois de derrotas significativas e de algumas fortes sinalizações dos parlamentares".
Gabriela Bezerra
Professora da UFRPE e pesquisadora do Lepem-UFC

As duas pesquisadoras ressaltam ainda um elemento simbólico importante nas negociações feitas neste início de mandato: a diferença percentual entre Lula e Bolsonaro, no 2º turno, foi pequena – a vitória foi por 50,90% de votos para Lula contra 49,10% do ex-presidente. 

"O pequeno percentual de votos refletiu no Congresso Nacional. O que isso significa? Significa que nós temos uma maioria conservadora, uma maioria de oposição ao Governo Lula, o que torna muito difícil ele conseguir aprovar algumas das MPs, algumas das propostas do governo. O que estamos chamando de derrotas não é anormal e é, de certa forma, até esperado, porque estamos nesse tensionamento entre governo e oposição, do ponto de vista institucional. E esse tensionamento no jogo faz com que existam mais conflitos do que consensos".
Paula Vieira
Socióloga e pesquisadora do Lepem-UFC

"Parlamentarismo informal"

Durante a conversa com o Diário do Nordeste, muitos parlamentares citaram os "gestos" do parlamento ao Governo Lula, inclusive com a aprovação de projetos como o arcabouço fiscal e da própria MP dos Ministérios, apesar das "falhas" na relação entre os dois Poderes. Nesse sentido, Arthur Lira aparece com destaque, com deputados apontando o presidente da Câmara como um dos principais responsáveis por isso. 

"Se o Lira não fizer articulação, não passa nada de interesse do governo. Entregaram tudo para o Lira, que tem ajudado. (...) Se não tiver a articulação do Arthur Lira, não aprova nada", resume o deputado Eunício Oliveira. 

Essa centralidade na figura de Arthur Lira é citada pelas especialistas ouvidas pelo Diário do Nordeste como um dos pontos para ficar atento quando se fala na relação entre Congresso e Governo Lula. 

A mudança na dinâmica interna principalmente da Câmara dos Deputados mudou desde o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), dando maior força aos presidentes da Casa nestes últimos anos, em uma espécie de "parlamentarismo informal em funcionamento no Congresso", indica Paula Vieira. 

"O presidente da Câmara acaba concentrando muitos poderes por conta das suas articulações políticas. Enquanto, nós temos um centrão forte, com articulador forte e esse Centrão sendo caracterizado por interesses desses deputados, nós temos um outro desafio para o governo Lula. O que foi um desafio para o governo Bolsonaro. No (Governo) Temer nem tanto, mas no Governo Dilma também", explica. 

Este crescimento na relevância dos presidentes da Casa, ressalta Gabriela Bezerra, não é algo exclusivo desta gestão federal e "existe margem sim de negociação". "A relevância existe há bastante tempo. Nos últimos governos, a Mesa Diretora ganhou ainda mais importância e tem mais recursos centralizadores. Mas não são tratores, existe margem sim de negociação", afirma.