O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) atualizou seu vocabulário técnico para divulgação dos dados urbanos do Censo de 2022. O Instituto anunciou que, diferente dos anos anteriores, não utilizará mais o termo “aglomerado subnormal”, e voltará a utilizar o termo favela, desta vez, complementado pela expressão “comunidades urbanas”. Entre os estudiosos do tema, a mudança foi tratada como um avanço, posto reconhecer terminologia aceita pelos grupos sociais que produzem esses espaços urbanos.
O que de fato essa mudança representa? Não precisa ser geógrafo ou arquiteto para ter uma noção de qual é a realidade urbana que a palavra favela designa no saber popular. Isso acontece porque, seja na escola, seja através dos meios de comunicação, somos bombardeados por referências de forma e conteúdo que supostamente marcam a favela. De modo mais comum, essas imagens são preconceituosas e com teor depreciativo: violência, crime, tráfico de drogas, pobreza, precariedade de infraestrutura, barracos, etc.
Quem leu o livro “Becos da Memória”, escrito por Conceição Evaristo, vai entender que, além do enredo de “Tropa de Elite”, as históricas ocupações urbanas, que na geomorfologia do Rio de Janeiro ganharam a denominação favela, são produto da formação social brasileira e da nossa capacidade enorme de gerar injustiças e desigualdades sociais.
As ocupações urbanas dessa natureza estão generalizadas pelo mundo, como demonstra Mike Davis no seu best-seller Planet of slums (Planeta Favela). Geralmente, se as primeiras no Rio de Janeiro têm origem ainda no século XIX, de acordo com Davis é no século XX, pós-guerra e em período de forte urbanização, que esses assentamentos humanos deixam de ser exceção e tornam-se predominância em manchas urbanas em Nairóbi, Bagdá, Mumbai, Nova Delhi e Lima. Mesmo com denominações locais específicas (kibera, cidade Sard, vila miséria e dharavi), a forma e o conteúdo se globalizaram.
Volto às páginas de Evaristo e das memórias narradas pela protagonista do livro. Quem as lê, entenderá o sofrimento de um povo, as dificuldades; contudo, com maior sensibilidade compreenderá o porquê da ressignificação do termo favela e da importância de sua reafirmação enquanto conceito oficial do IBGE. Nos Becos de Evaristo há muito trabalho, arte, felicidade, festa e solidariedade. Na favela há vida e vida em abundância.
Em textos publicados por pesquisadores do Observatório das Metrópoles, a avaliação da mudança foi associada a aspecto positivo, sobretudo, por seu caráter político e por ter sido fruto da escuta das pessoas e sujeitos diretamente interessados. O termo anterior, aglomerado subnormal, fortalecia a ideia negativa que se pode criar sobre as ocupações, destacando as precariedades urbanas e a inexistência de base legal para a posse da terra ou dos imóveis lá construídos. Em palavras simples, a favela é retratada como um câncer no tecido urbano.
O termo e a definição atual não desconsideram os problemas, todavia reafirmam a responsabilidade do Estado e da sociedade no não atendimento de demandas sociais básicas. O termo favela passa por uma virada significativa, pois ganha força política a representar a voz de mais de 16 milhões de brasileiros que merecem prioridade nas políticas públicas e na democratização dos direitos postos na nossa Constituição Federal e no Estatuto da Cidade.
A luta permanece para que a favela não se confunda com caos ou pobreza, pelo contrário, que seja lembrada como manifestação social e política constituída no espaço das nossas cidades e a merecer atenção. Lembrando Conceição Evaristo, nas favelas e comunidades existem milhões de pessoas como os personagens Vó-Rita, Bondade e Negro-Alírio resistentes ao histórico trator do desfavelamento social.