No último dia 1º de maio, Dia do Trabalhador, uma promoção de cebola causou alvoroço em um supermercado de Brasília. Entre empurrões, consumidores arremessavam os vegetais capturados à força para o carrinho de compras. Não se sabe por quanto o produto era vendido, mas o importante é o simbolismo por trás das imagens: os efeitos da degradação do poder de compra devido à pressão inflacionária no Brasil.
Recentemente, cenas de pessoas revirando caminhões de lixo e comprando ossos para se alimentarem já expuseram o empobrecimento dos brasileiros. Mas registros de tumulto para garantir a feira da classe média não eram amplamente divulgados desde o fenômeno da hiperinflação, entre as décadas de 1980 e 1990.
Naquele período, havia fila nas portas das lojas e, também, de postos de combustíveis para driblar as oscilações constantes. Dentre as memórias daquela era, a mais recorrente é o tilintar da máquina etiquetadora a se repetir nos corredores dos supermercados.
“O mais preocupante era a troca de preço da manhã para a tarde. Você estava no ‘mercantil’ e, de repente, o preço era alterado ali, na sua frente”, relata o professor universitário Joacillo Luz Dantas, de 55 anos.
O Joacillo, que tinha 22 anos na época, presenciou percentuais superiores a 1700%, em 1989. A situação foi revertida somente com a implementação do bem sucedido Plano Real, em 1994. Desde então, não houve mais indicadores tão altos.
Entre 2002 e 2003, contudo, ocorreu um surto inflacionário puxado pelo dólar. Por isso, pode-se dizer que a população jovem (entre 20 e 30 anos) encara, pela primeira vez, uma inflação de dois digítos.
No acumulado de 12 meses até abril deste ano, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) avançou 12,13%, segundo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Todavia, por mais que as memórias se misturem com a realidade atual e o senso comum encontre semelhanças, são cenários econômicos distintos.
Economistas ponderam que a inflação deve arrefecer. Portanto, o risco de um retorno do fenômeno hiperinflacionário é extremamente baixo (ler análise abaixo).
Jovem teme perder independência financeira devido à alta generalizada
A coordenadora de operação Mel Diniz, de 26 anos, cresceu ouvindo os relatos de familiares sobre as dificuldades econômicas do passado, mas não esperava vivenciar angústia semelhante.
“O que me impressiona é a rapidez das alterações de hoje…Eu, que nasci em 1996, só sei da hiperinflação pelo que minha família falava. Minha mãe dizia que ia ao supermercado e, enquanto estava pegando os produtos, estavam etiquetando novamente”, conta.
“Na minha infância, a situação já estava com alguma estabilidade, mas ainda comíamos carne de segunda, por exemplo. Depois, começou a mudar o acesso a produtos de qualidade. Mas, atualmente, parece que estamos retornando para aquele tempo”, exprime.
Mel, que decidiu morar sozinha há um ano e meio, teme não conseguir manter a conquista tão planejada em razão da alta inflacionária.
“Quando eu morava com os meus pais, já tinha minhas responsabilidades financeiras. Fui fazer um comparativo com a planilha de gastos de 2018 e fiquei chocada. Eu utilizava R$ 500 para as compras de uma família com três pessoas. Agora, pago R$ 1 mil só para mim”, contabiliza.
A jovem decidiu substituir os supermercados pelas feiras de ruas para economizar, além de reduzir o consumo de carne vermelha. Há três meses, entretanto, eliminou de vez o alimento do cardápio. Também trocou o tipo de queijo e tirou itens considerados supérfluos, como cogumelos.
“Estou preocupada com minha independência. Tenho muito temor de não conseguir crescer no trabalho e não acompanhar esses aumentos. A sensação é que, cada vez mais, meu salário está sendo desvalorizado. Meu medo é não conseguir mais me manter financeiramente, algo que foi um passo grande”, lamenta.
"O meu medo é tudo voltar a ser como antes"
A professora aposentada Socorro Monteiro, de 64 anos, não esquece das marcas deixadas pelo período da hiperinflação.
“Na Ditatura Militar, a inflação já estava altíssima. Você recebia 1 mil cruzeiros (moeda em circulação entre 1940 a 1970) e não dava nada no fim do mês. Voltava do supermercado com quase nada, as coisas mudavam da manhã para a tarde. Raramente, se comprava uma lata de margarina pelo mesmo preço”, exemplifica.
Socorro recorda das três medidas econômicas fracassadas do governo de José Sarney para tentar estabilizar a economia. O então presidente ocupou o cargo após a morte de Tancredo Neves – primeiro chefe do Executivo a tomar posse após a Ditadura Militar, em 1985.
Em 1986, ele implantou os planos Cruzado, depois o Bresser, em 1987, e Verão, em 1989. Nenhum cessou a inflação galopante. Criou-se, então, a figura dos "fiscais do Sarney” para a população monitorar as elevações nos estabelecimentos.
“Era confusão nos supermercados o tempo todo com ‘os fiscais do Sarney’. Depois, veio o Collor (1990) e a inflação continuou alta. Lembro-me da Zélia Cardoso (ministra da Fazenda à época) e dele (Collor) confiscando a poupança da gente. Só há uns três anos fui receber os 13 mil cruzeiros novos que tinham confiscado e não deram nem R$ 2 mil”, relata.
Atualmente, as memórias inflacionárias se misturam e assustam. Socorro abriu mão do lazer para reduzir os impactos da escalada dos preços dos alimentos e da energia.
"Agora é sobrevivência, cortando os gastos. O meu medo é que as coisas fiquem como antes. Às vezes, parece que estamos voltando para a época de 1970 e 1980", lamenta.
Quais as diferenças entre os dois períodos inflacionários no Brasil?
A alta generalizada e contínua entre as décadas de 1980 e 1990 foi consequência de uma série de acontecimentos, incluindo a elevação dos gastos públicos durante a Ditadura Militar (1964 a 1985) e da dívida externa, entre outros. Em 1970, o índice já era de 19,7%. A cada ano, seguiu acelerando.
Já o cenário atual é caracterizado pelo acúmulo dos efeitos da pandemia de Covid-19, questões climáticas, aumento do preço do petróleo e demais impactos negativos da guerra da Rússia contra a Ucrânia. Contudo, não houve a adoção de uma política econômica eficaz para garantir que a comida chegue à mesa dos brasileiros.
Ambas as realidades impactaram duramente os cidadãos, sobretudo, os mais pobres que não têm como evitar a desvalorização da moeda, mas têm dimensões distintas, como observa André Braz, coordenador do Índice de Preços ao Consumidor (IPC) do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre).
“Naquela época, o valor do dinheiro era corroído, diariamente, mas, numa velocidade gigante, a ponto das famílias comprarem tudo que precisavam sob pena de o dinheiro não ser suficiente para as compras do fim daquele mês com o mesmo salário”, enfatiza.
Braz destaca que poucos trabalhadores tinham acesso ao sistema financeiro. Nesse contexto, somente as pessoas com mais poder aquisitivo aplicavam os recursos em bancos para rendimento diário de juros, manobrando a desvalorização dos rendimentos. Esse modelo de aplicação financeiro ficou conhecido como "overnight"
“Os mais pobres, que não tinham acesso a esse ‘overnight’, se viravam comprando as coisas o mais rápido possível”, detalha.
Naquele período, lembra, criou-se a cultura de estocar comida. As pessoas tinham freezers para armazenamento de produtos encontrados em promoções.
Segundo o Banco Central, os comerciantes também precisaram mudar a logística de recebimento e de distribuição para atender à demanda intensa nos primeiros dias do mês para lidar com os corredores praticamente vazios nas semanas seguintes.
“A verdadeira poupança era o estoque de alimentos que a família tinha em casa. Foram quase quatro décadas de inflação desafiadora", explica Braz.
O economista reforça que o Plano Real permitiu ao brasileiro o planejamento da compra de um imóvel, da aposentadoria e de investimentos. Situações que não eram possívels na era da hiperinfleção.
A sensação de 'déjà vu' da inflação
Há 33 anos, o professor Joacillo Luz Dantas, de 55 anos, citado no início desta reportagem, ainda era estudante de Engenharia quando experienciou a alta generalizada. O contexto econômico impactou o orçamento e os costumes da família.
“Meu pai já era aposentado e ganhava um salário. Quando o recebia, era comido pela inflação. Era uma coisa horrível”, recorda. Outra memória está relacionada à feira semanal ter passado a ser mensal para garantir o estoque de alimentos – hábito desenvolvido, naquele período, pelas famílias brasileiras.
“Era preciso comprar o máximo de arroz e de feijão possível para driblar os aumentos. Lembro-me que o meu pai começou a diminuir as compras de chocolate e, depois, começou a dividir a barra ao meio para os filhos”, revisita.
Joacillo reconhece ter sido uma realidade pior do que a atual, mas nota que o "poder aquisitivo está diminuindo" novamente. Ele deixou já deixou de consumir vinhos e os queijos finos foram substituídos pelo coalho. O café e a carne vermelha também passaram a pesar mais no orçamento.
“Não chega ser uma hiperinflação, mas os aumentos são grandes para um salário que está congelado”, enfatiza.
Já são três anos sem ganhos reais para repor a inflação.
A corrosão do poder de compra
O empresário Romário Fernandes, de 29 anos, nasceu pouco antes da estabilidade do real e não teme vivenciar a hiperinflação. “Não acredito que seja o caso desse cenário se repetir, o mercado está mais maduro e em um contexto completamente diferente”, analisa.
Apesar de não se preocupar com volta do mesmo fantasma, identifica que a inflação atual traz ameaças à segurança financeira. "No curto prazo, não vejo esse poder de compra parando de despencar”, afirma.
Para tentar se esquivar das altas, ele precisou mudar alguns os hábitos. “A inflação aumentou muito meu custo básico, principalmente, com alimentação. O café, um dos itens mais essenciais para mim, teve um aumento progressivo de quase 100% no valor, além da bandeja de ovos e frango”, enumera.
“Deixei de consumir alguns alimentos e passei a comprar o básico. Também comecei um acompanhamento com nutricionista para conseguir manter uma alimentação saudável de forma mais barata e equilibrada”, conta.
Há risco de hiperinflação?
Para economistas, o risco é baixo. O coordenador do Índice de Preços ao Consumidor (IPC) do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), André Braz, aponta que a pressão inflacionária é global.
“Não é só o brasileiro jovem que está experimentado mais inflação. O americano e o europeu jovem também estão experimentando níveis que não conheciam”, avalia.
“Mas, no Brasil, o jovem não está vivenciando nada que se compare ao período de hiperinflação. Está muito longe disso, e a expectativa é passar os efeitos da Covid-19 e da guerra, que foi outro evento que acelerou a inflação no mundo, para os preços desacelerarem”, pondera.
André aponta que a projeção do mercado segue pessimista, mas abaixo da inflação acumulada nos últimos 12 meses, podendo cair da taxa atual para 8%.
“Não é considerado o patamar ideal porque está muito longe da meta estabelecida para esse ano, que é 3,5%. Contudo, sabemos que o mundo inteiro vive uma pressão que está colocando a inflação em um outro patamar, mas não é algo que vá durar por décadas”, enfatiza.
Para Braz, esses acontecimentos tendem a se estabilizar até o fim do ano. “É efeito passageiro e não vai atrapalhar muito os planos de vida da população mais jovem”, diz.
O professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e PhD em Desenvolvimento Regional, Lauro Chaves, observa que a inflação em dois digítos ocorre em meio aos altos índices de desemprego.
“A renda diminuiu com a inflação, e nós temos que salientar o elevado contingente de desempregados que já existiam antes da pandemia, ainda oriundos da grande recessão de 2014 a 2016”, diz, acrescentando que a recuperação econômica com o crescimento de cerca de 1% do Produto Interno Bruto (PIB) de 2017 a 2019 não devolveu esses postos de trabalho.
“Isso atinge de forma dramática os mais vulneráveis, incluindo não só essa massa de desempregados da qual eu me referi, mas, também, aquela grande parcela da população brasileira e cearense que vive com orçamentos de até dois ou três salários mínimos”, alerta.