O que aprendi com a Marília Mendonça que errou e acertou em praça pública

Dois anos depois, descubro que o 1º show de Marília se tornou o meu último e lembro tudo que ela representou para mim

Julho de 2019, Festeja, Estacionamento da Arena Castelão. Era a primeira vez que eu ia ao show de Marília Mendonça. Não cabia em mim toda a felicidade e a empolgação que eu estava nesse dia. Passei a semana toda esperando, cantando as músicas de "Todos os Cantos" com meus amigos também jornalistas. Agora, só vem o refrão: "Todo mundo vai sofrer".

Para uma fã dela, custava acreditar que eu demorei tanto tempo pra ir a um show de Marília. Quando fui, pensei: o primeiro de muitos, com certeza. Mal sabia eu que o primeiro show, 2 anos depois, também se tornaria o último.

Um tempo que não tinha pandemia, que tinha aglomeração e que eu cantava sem máscara deixou ainda mais especial essas horas da Marília no palco. Ela entrou com uma jaqueta brilhosa, esplendorosa, cantando logo "Ciumeira". Eu vestiria essa jaqueta brilhosa. Sempre me representou muito. 

Para um mulher gorda como eu, foi essencial ter Marília brilhando e mostrando todo seu talento em um meio musical tão machista. Antes de se dizer feminista, ela já agia como uma. Queria o seu espaço, os mesmos direitos que homens tinham, queria ser livre para cantar, se expressar, beber a cervejinha nas suas "famosas resenhas", sem ser julgada e mal falada. 

O sertanejo masculino trazia, nas canções, as mulheres como objetos, atreladas a poder, farra, carrões... Marília conquistou aquele público que já não estava mais satisfeito com a mulher representada no sertanejo universitário, que deveria ser novo, mas era tão antiquado quanto o de décadas atrás. 

Ela tocou em questões que nem sequer imaginávamos: as profundidades da mulher que ama e não é correspondida, da mulher que só vive com a ausência, da mulher que se submete a questões por amor, da mulher que é a amante ("amante não tem lar" sempre foi muito pesado de escutar), da mulher que supera. "Para de insistir, chega de se iludir. O que 'cê 'tá passando, eu já passei e eu sobrevivi".

Marília cantou (e em alguns casos compôs) todos os momentos de dor e alegria das mulheres brasileiras. E, agora, crio linhas do tempo com as músicas e muitas podem até valer para este momento que estão dizendo que ela morreu (só pode ser brincadeira).

Conheci Marília, pela primeira vez, quando minha mãe chegou cantando "Infiel". Como assim? Que música é essa, mãe? "Minha filha, ela também é gorda que nem você e tem o nosso sobrenome". Eu já gostei e fiz o caminho natural de um tempo conectado. Google: Marília Mendonça. Lá estava ela no Sambódromo de Manaus, DVD de 2017, lotado, todo mundo cantava com uma energia, que me fez pensar: como só conheci essa mulher agora? Desse dia em diante, virei "marilier". 

Todo ano, na minha lista dos mais ouvidos do Spotify. Para alguns, virei a chata que, em qualquer festa que me chamavam, eu perguntava logo: vai tocar Marília? Fiz amigos compartilhando a inspiração que ela sempre foi pra mim. 

Como toda musa que a gente acompanha nesse mundo de heróis incertos, escolher uma pra seguir por admiração, acima de tudo, é querer que ela seja, no mínimo, perfeita. Marília não era. E quem é? 

Sofri quando ela resistia, no início da carreira, em dizer que não era feminista, mas entendi e relevei porque as atitudes e as músicas diziam o contrário. E pensei que poderia ser muita arrogância minha querer que ela se declarasse feminista. Todo mundo tem seu tempo, seus processos. Talvez, sem usar esse alcunha, ela passou mais mensagens de igualdade de direitos entre homens e mulheres do que qualquer outra pessoa que se declare, desde já, feminista. 

Sofri quando meus amigos me marcavam no whatsapp ou nas redes sociais, perguntando como eu poderia ser fã dela. Sofri com declarações transfóbicas que não me agradaram. Mas amei quando ela reconheceu o erro e pediu desculpa. 

Nesse episódio lembrei, inclusive, que já fiz piadas preconceituosas que hoje sequer me orgulho. Tudo é disposição para aprender e escutar o outro. Aqui, entendi que Marília poderia ser eu. E eu poderia ser Marília alguns anos atrás. Provavelmente, eu também seria cancelada. 

Se é verdade mesmo que ela partiu, porque custo a acreditar, eu tenho que agradecer às lives na pandemia. Elas me trouxeram alegria, bebi cantando "De quem é a culpa?", me conectei com amigos do outro lado da tela (Alô, Valdir, Geovana, Levi, Aurélio e Cristiano). Momentos de alívio num tempo que não se via um novo tempo.

Marília em mim vai sempre existir. Quando minha mãe cantar, quando meu pai reclamar: "De novo, Marília?". Quando uma nova artista gorda ganhar os palcos. Não vai sair dos indicados do Spotify e vou sempre voltar pro DVD de 2017, pro documentário da Globoplay.

Quero acreditar que ela deixou uma gama de músicas gravadas a serem divulgadas. Quero que Maiara e Maraisa falem sobre ela e tornem o "Patroas 35%" ainda maior do que eu esperava que seria.

Irônico, como é a vida, o teaser de "Esqueça-me se for capaz" traz Marília, Maiara e Maraísa vestidas de pilotas, entrando em um avião. Irônico como é a vida, esta fã não vai te esquecer, Marília, porque para uma boa entendedora a sua ausência física não basta. 

Este texto dedico aos meus amigos, que tanto curtiram o show de Marília comigo: João Lima Neto, Valdir Almeida, Sabrina Emanuela, Levi de Freitas, Paula Abreu, Mylena Gadelha, Lucas Ribeiro, Aldeson Matos, João Bandeira e Vanessa Andrade. 

Aline Conde, Editora Executiva do Sistema Verdes Mares