Duas amigas que percorrem uma jornada de amadurecimento e autoconhecimento na busca por uma terceira, desaparecida. Uma artista solitária cuja arte, casa e interior se mesclam de maneira concreta e simbólica. Uma festa popular religiosa que é reconfigurada a partir da ação e memória de grupos excluídos do festejo.
São esses os motes narrativos de três dos curtas de produção cearense selecionados para a 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Para além de vários possíveis pontos de ligação e diferenciação entre as obras, o conjunto se irmana a partir de um dado central: são, todas, obras dirigidas e protagonizadas por pessoas trans.
Ao Verso, Ella Monstra, Bruno Lobo La Loba e izzi vitório — que dirigem respectivamente os filmes “Kila & Mauna”, “Jaci” e “Pirenepolynda” — refletem sobre as singularidades e aproximações das abordagens, temas e estéticas dessa produção e, ainda, a importância da força coletiva das obras e profissionais trans.
Percursos de realização
Os primeiros contatos de Ella, Bruno e izzi com o audiovisual diferem entre si — da abordagem documental no curso de Jornalismo à participação em um coletivo multilinguagens —, mas um ponto de encontro dos processos formativos se deu na Escola Pública de Audiovisual da Vila das Artes, equipamento da Prefeitura de Fortaleza.
“Jaci” e “Kila & Mauna”, por exemplo, foram realizados no escopo formativo da Escola, que apoiou as produções. “Foi nesse processo de formação da Vila das Artes que pude roteirizar, dirigir e montar meu primeiro filme”, aponta Ella.
“Além da estrutura que a escola fornece, os equipamentos e o acompanhamento com os técnicos do Núcleo de Produção Digital, a Vila garante o transporte e alimentação da equipe”, diz Bruno, que em “Jaci” também contou com apoio da Universidade de Fortaleza — onde foi estudou com bolsa filantrópica —, parcerias, campanha de pix colaborativo e investimento pessoal.
“Kila & Mauna” também teve múltiplas fontes para a concretização. “Os recursos foram a partir de doações no pix e de algumas empresas e coletivos que colaboraram diretamente em parceria, por acreditar no projeto. Fora isso, também tivemos apoio estrutural da Vila das Artes. A maior doação foi o trabalho de todas as pessoas que estão na equipe”, considera a diretora.
O goiano izzi, que assina assim mesmo, tudo com letra minúscula, por sua vez, estudou História na Universidade de Brasília, onde teve contatos com o fazer audiovisual a partir de amigos do curso na instituição. Em 2019, iniciou o curso de Realização em Audiovisual na Vila, se formando em 2021. Além disso, ele também estudou, em 2023, roteiro na Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños (EICTV), em Cuba.
“Pirenopolynda” — coprodução entre Ceará, Goiás e Distrito Federal que tem na direção, ainda, a protagonista Tita Maravilha e Bruno Victor — foi concretizado a partir de apoio público e colaborações. “É fruto de um fundo distrital de incentivo à cultura, o FAC (do DF), e também de uma vakinha online que foi feita para custear os gastos com segurança contra a Covid” explica.
Representações diversas
Fundando imaginários possíveis para representações trans, os três filmes elaboram narrativas e estéticas próprias e diversas entre si. “‘Jaci’ aborda uma narrativa de transformação, que é um ciclo inerente a uma vida trans. O autoconhecimento é algo que nos acompanha desde os primeiros reconhecimentos de nossa existência. Vivências que nos marcam, interiormente e também fisicamente”, reflete Bruno.
As “marcas” se concretizam, na obra, em diversas elementos das cenas: da rachadura na parede da protagonista aos “processos exaustivos” de ser uma pessoa trans e artista. “A intenção maior é criar uma narrativa catártica, indicando novos caminhos, processos de cura, de autocuidado e de acolhimento”, complementa.
Já em “Kila & Mauna”, Ella aponta que a obra não lida com o que se entende, de forma geral, como uma “representação trans”. “É um filme sobre duas amigas em uma jornada de amadurecimento. Nesse caminho, elas se reconhecem entre si e a si mesmas”, resume a trama.
“Eu queria fazer um filme que fossem duas pessoas trans existindo, amando, se relacionando, se descobrindo, e tudo isso sendo trans, mas que isso não fosse a perspectiva principal”, explica. “As questões delas passam sim por esses processos de transição, mas nesse mundo elas conseguem ir além disso, conseguem ser humanas”, avança.
“Pirenepolynda”, por sua vez, traz uma abordagem documental mais pronunciada, reivindicando uma “memória travesti” na Festa do Divino, tradicional festejo de Pirenópolis (GO) que ocorre há mais de 200 anos.
“É uma festa tradicional religiosa, mas que também vai se tornando uma manifestação de cultura popular”, contextualiza izzi. A cooptação da expressão por elites acaba excluindo dela pessoas trans, travestis e negras. O gesto do curta, então, é “reconstruir” essa presença.
“A ideia é reivindicar esse lugar e reconstruir uma memória nossa dentro desse contexto que também nos diz respeito e que também nos forma. Afinal, existem pessoas trans construindo as culturais tradicionais e populares aos montes”, elabora.
Essa retomada se dá de diversas formas, incluindo a partir da construção de sequências que o diretor define como “menos óbvias”. “Tem uma cena que é de três travestis fazendo pamonha a partir da receita enviada pela avó de Tita, a protagonista. Fazer pamonha, se divertir, cozinhar juntas faz parte da vida travesti, mas onde vemos isso?”, questiona.
Presenças em frente e atrás das câmeras
Nos três filmes, tanto equipes quanto elencos têm presença trans fortalecida. Funções como produção, direção de fotografia e outras também são compostas por profissionais trans e os protagonismos das obras são transcentrados — ou seja, formados exclusivamente por pessoas trans. Vale ressaltar que a presença cearense conta ainda com o curta “Onde Está Mymye Mastroiagnne?” (PE/CE), de biarritzzz, também protagonizado por uma pessoa trans.
“Jaci” tem elenco composto por duas mulheres trans e conta com pessoas não-binárias na equipe. Em “Pirenepolynda”, todos os departamentos possuem pessoas trans, travestis e LGBTs. Já em “KIla & Mauna”, mais da metade da equipe é de pessoas trans, incluindo direção, roteiro e elenco, além das direções de departamentos.
“Isso é muito importante, porque coloca as pessoas trans em um lugar de protagonismo que muitas vezes nos é negado dentro do cinema. Entendi que só poderia realizar esse filme se tivesse uma maioria de pessoas trans dentro do projeto”, elabora Ella.
“Precisamos nós mesmos fazer os filmes, escrever roteiros, operar equipamentos de som e câmera, para que nós consigamos criar os parâmetros e definir quais são nossas narrativas, nossas estéticas e a forma como queremos ser representades”
Para Bruno, a presença de profissionais trans nas obras impacta também nos modos e relações para a concretização das produções. “Tem a ver com a abordagem nos procedimentos e no set”, inicia.
“Creio que exista, através de nossas vivências, um posicionamento ético e político de que caminhos percorrer, quais os procedimentos mais saudáveis para uma equipe onde o respeito e os limites dos corpos sejam prioridades”, defende, resumindo: “Nossa presença não apenas molda narrativas visuais, mas também influencia o fazer, desafiando antigas condutas, quebrando estereótipos e construindo uma nova prática”.
Em olhar alargado, Ella lembra da relevância, também, de pessoas trans ocuparem outras instâncias do audiovisual. “Existe um movimento até bem amplo para a inclusão de pessoas trans na frente das telas, atuando, mas precisamos estar em todos os departamentos. Precisamos estar, inclusive, na construção das políticas públicas do audiovisual, em lugares onde possamos de fato mover as estruturas que foram criadas para limitar nossas atuações”, defende.
Essa presença diz respeito, também, à questões de acesso material, lembra izzi. “Precisamos falar de empregabilidade e bem viver entre nós, entre os nossos”, ressalta. “Quando falamos de ampliar a participação de pessoas trans e travestis em qualquer área de trabalho significa dar mais oportunidades para que essa população possa viver bem. Falo sobre fazer trabalhos que nos paguem”, afirma.
“O setor audiovisual é importante economicamente e também em termos de construção de imaginário, então ampliar nossa participação nesse setor significa construir um novo imaginário, produzir memória e contribuir para o bem viver dessa população”, resume o cineasta.
Coletividades
Seja na equipe do filme em si, em uma curadoria como a de Tiradentes que aproxima os filmes ou mesmo em associações, estar em coletivo se prova como uma maneira exitosa de movimentar e demandar presenças de pessoas trans no audiovisual
“Vejo como uma forma de resistência e celebração conjunta. Participar de movimentações coletivas é mais do que buscar igualdade de oportunidades no audiovisual, é uma jornada de criação ativa de novos caminhos”, acrescenta Bruno.
“A coletividade é uma das maiores estratégias que temos para vencer em um mundo que nos quer fazer perder, e o audiovisual é um lugar onde é possível ver isso de forma nítida”, aponta Ella. “Movimentações assim geram acessos que proporcionam uma rede de apoio essencial, de forma empática e colaborativa. Uma articulação assim é mais eficiente para as demandas e para criar algo poderoso com impacto duradouro”, dialoga Bruno.
Para além da importância de se fortalecer em comunidade com outras pessoas trans, Ella também lembra do papel das pessoas cis nesse contexto. “Elas precisam fazer o que estiver a seu alcance para garantir a participação de pessoas trans em projetos de audiovisual. Contratem pessoas trans, divulguem o trabalho, apoiem financeiramente e simbolicamente a revolução que precisamos fazer dentro do audiovisual”, conclama.
“Em rede, a gente consegue abrir mais portas e também criar uma estrutura que pense no cuidado uns dos outros. Adentrar alguns espaços hoje em dia já é possível, mas permanecer neles é difícil. Quando não estamos sozinhes, é mais possível alçar outros voos”, finaliza izzi.
27ª MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES
Quando: até 27 de janeiro
Mais informações: no site da Mostra e no Instagram da Universo Produção
“Jaci” e “Kila & Mauna” serão disponibilizados na IC Play, plataforma do Itaú Cultural, entre os dias 31 de janeiro e 9 de fevereiro