10 anos da morte do pedreiro Tico: Defensoria pede ao Estado R$ 7,6 milhões em danos e Justiça manda reabrir processo

Três policiais militares foram acusados pelo crime e inocentados no Tribunal do Júri

Uma década separa a morte do pedreiro Francisco Ricardo Costa de Sousa, o 'Tico', e a mais recente decisão da Justiça do Ceará que trouxe uma reviravolta ao processo cível, reaberto neste mês de dezembro. 

Sem condenados pelo homicídio na esfera criminal, agora, a família da vítima torturada e morta em fevereiro de 2014, após abordagem de policiais militares, em Fortaleza, tem expectativa de receber R$ 7,6 milhões do Estado. 

Em maio deste ano, a Defensoria Pública Estadual deu entrada na ação com pedido de danos morais, materiais e não-pecuniários contra o Estado do Ceará, pela morte de 'Tico'. Em primeiro grau, juízes haviam alegado que o processo não poderia tramitar, já que o caso relacionado aos danos estaria prescrito.

A família, representada por defensores públicos, apelou da sentença proferida na 4ª Vara da Fazenda Pública de Fortaleza, no último mês de julho, na qual o feito tinha sido extinto "com resolução do mérito, por evidenciar a ocorrência de prescrição", conforme a decisão.

Já neste mês de dezembro, um novo entendimento trouxe uma reviravolta ao caso: o pedido da família foi conhecido e a sentença em 1º grau "cassada" e "com retorno dos autos à origem para regular tramitação".

NOVA DECISÃO

A partir da decisão proferida no gabinete da desembargadora Lisete de Sousa Gadelha, a família do pedreiro morto a caminho de almoçar junto à mãe e, segundo a acusação, deixado por PMs já sem vida no Frotinha da Parangaba, enxergou uma nova chance de ser reparada.

Antônia Costa de Sousa, irmã de 'Tico' , tem expectativa de receber parte do valor e revela o desejo que "com esse dinheiro eu vou pagar um tratamento psicológico pra minha mãe e vou abrir uma instituição para vítima de violência aqui no Ceará".

"O Estado tem que se responsabilizar, Aconteceu um crime aqui no estado do Ceará e a Justiça não fez nada. Minha mãe sofre muito com a morte do Tico Ela ficou doente, a família ficou doente. Eu sei que a reparação de danos não vai trazer a vida do Tico de volta, mas eu quero que a Justiça seja feita pelo meu irmão e para que não aconteça com mais ninguém"
Antônia Costa, irmã da vítima

"Resta evidente a não observância pelo douto Juízo de primeiro grau, do que prevê expressamente a norma vigente, eis que a demanda criminal transitou em 02/08/2022 e a ação indenizatória foi ajuizada em 11/05/2024, portanto, dentro do lapso temporal previsto no Decreto Lei n. 20.910/32... Por fim, reconhecido o equívoco na aplicação da prescrição, deve ser cassada a sentença objurgada sem a aplicação da teoria da causa madura, uma vez que sequer houve instrução da demanda de origem, razão pela qual deve retornar os autos à origem para o seu regular processamento"
Trecho do acórdão em 2º Grau do TJCE

Gina Moura, defensora pública, explica que agora não existe prazo para a decisão e que deve começar a instrução em 1º Grau e alerta: "os custos da violência letal vão além do que a gente enxerga de responsabilidade criminal. Tem o impacto socioeconômico. Dentro do núcleo familiar temos afastamento das atividades econômicas, comprometimento dos projetos de vida, adoecimento físico e mental. São coisas que o olhar exclusivo para a questão criminal não nos permite ver".

TRÂMITE DO PROCESSO

Em maio deste ano, o juiz da 4ª Vara da Fazenda Pública reconheceu a prescrição e extinguiu a ação. A Defensoria apelou e sustentou que o crime de tortura "é imprescritível, por aplicação do Estatuto de Roma".

Dois meses depois, ainda na 4ª Vara, a juíza auxiliar manteve a decisão de extinguir o processo destacando que "no caso dos autos, não houve condenação dos policiais militares submetidos a julgamento pelo Tribunal Popular do Júri. Se condenação houvesse, como uma das consequências da penal condenatória, temos a reparação civil das vítimas".

Gina destaca que a Defensoria respeita a decisão soberana do Júri, que já transitou em julgado, e acrescenta que "há uma constatação muito clara que é a responsabilidade do Estado pela prática de tortura. Uma prática que se repete e está atravessada pela questão do racismo, território, classe".

"O lapso de tempo é um desafio. Mais de 10 anos do fato. O fato é que hoje se entende que em relação à prática de tortura ocorrida na Ditadura, as ações indenizatórias, são imprescritíveis. A gente usa esse entendimento de forma analógica dizendo que a forma de tortura praticado por policiais militares é essa lógica de destruição do inimigo"
Gina Moura
Defensora pública

O Ministério Público do Ceará (MPCE) também defendeu que o crime contra Tico é "imprescritível, já que a vítima teria sofrido tortura, um dos crimes contra a humanidade reconhecido pelo Tribunal Penal Internacional. No Brasil, esse tipo de crime é considerado imprescritível desde 2002, quando foi promulgado o Decreto Federal nº 4.388/2002".

"Diante disso, a 1ª Câmara de Direito Público do TJCE acatou os argumentos do MP do Ceará e da Defensoria Pública, anulando a decisão de 1º grau que havia considerado que o crime havia prescrito. O TJ determinou ainda que o caso retornasse à 1ª instância, a fim de que seja julgado o pedido de indenização solicitado pela família", acrescentou o Ministério Público em nota enviada à reportagem.

Além do valor de R$ 7,5 milhões, a família também pede ao Estado que:

  • Realize um ato público de reconhecimento de responsabilidade do Estado do Ceará em virtude da atuação de seus agentes de segurança pública
  • A construção de um memorial em favor de Tico, preferencialmente no bairro Maraponga onde o fato ocorreu
  • Ofereça, gratuitamente, por meio de suas instituições públicas de saúde especializadas ou, na ausência destas, por entidades privadas, e de forma imediata, adequada e efetiva, o tratamento psicológico, psiquiátrico e outras práticas complementares de saúde  de que os requerentes necessitem, após consentimento fundamentado e pelo tempo que seja necessário, inclusive com o fornecimento gratuito de medicamentos, no prazo de 30 (trinta) dias

Os beneficiários previstos nos pedidos são irmãos, filhos e a mãe de Tico.

A MORTE DE TICO

Francisco Ricardo Costa de Sousa estava a caminho da casa da mãe, na Maraponga, para o almoço no dia 13 de fevereiro de 2014. Faltavam quatro quarteirões para o pedreiro 'Tico' encontrar a família, quando foi abordado por policiais que estavam em viatura da PM, ligada ao antigo Batalhão do Ronda do Quarteirão.

Três militares foram investigados, indiciados, denunciados e levados até ao Tribunal do Júri. Conforme denúncia do MP, o pedreiro foi confundido com um assaltante e colocado na viatura pelos PMs do Ronda do Quarteirão, levado a um matagal e espancado. A vítima morreu em decorrência de politraumatismo.

Ao fim do rito do processo, inocentados, por decisão dos jurados. 

O processo passou pelo 2º Grau do TJCE e, em 2020, chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em 2022, o ministro e relator Sebastião Reis Júnior, negou provimento do recurso especial e manteve os PMs como inocentes.

Ainda em 2014, os PMs acusados foram expulsos dos quadros da Polícia Militar do Ceará. Após a absolvição na esfera criminal, eles deram entrada no processo de reintegração à Corporação e pedem, cada, cerca de R$ 2 milhões referentes aos valores retroativos desde a expulsão, acrescidos de correção monetária.

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