"As crianças são o futuro da nação": quem nunca ouviu frase parecida sendo proferida por algum chefe de Estado ou autoridade sobre a necessidade de proteger e garantir os direitos das crianças? O discurso do compromisso com a infância é unânime, mas sua ampla efetivação ainda é um desafio. Neste ano, o Governo Lula (PT) publicou decreto federal para elaboração de uma Política Nacional Integrada para a Primeira Infância. A medida determina as diretrizes para a construção de uma regra geral que deve ser seguida por todas as esferas da administração pública para garantir a preservação dos direitos dos pequenos nessa fase. Entidades que defendem os direitos de crianças e adolescentes comemoram o avanço, mas querem que a legislação preveja um orçamento para municípios efetivarem as ações.
Apesar de a legislação começar a ser criada agora, muitos entes brasileiros já saíram na frente sobre o tema, instituindo leis próprias que regem a preocupação federativa com a Primeira Infância. De todas as capitais brasileiras, o destaque fica com Fortaleza. A Terra da Luz foi a primeira a criar um plano municipal com políticas para crianças de 0 a 6 anos, ainda em 2014, antes mesmo da publicação do Marco Legal da Primeira Infância, sancionado em 2016 pela então presidente Dilma Rousseff (PT) com orientações sobre a prioridade de atendimento educacional, assistencial, cultural, nutritivo, de saúde e lazer para o público-alvo.
Naquela ocasião, o Marco já determinava a formulação e implementação da Política Nacional Integrada para a Primeira Infância. Quase 10 anos depois, as diretrizes para tal foram postas no papel. Para sair dele, no entanto, ainda é necessário concluir as determinações.
Assim como Fortaleza, o Ceará também se destacou entre os estados brasileiros ao investir na faixa etária por meio do programa Mais Infância, criado em agosto de 2015 e instituído como política pública de Estado em março de 2019. A iniciativa contempla ações integradas com os 184 municípios cearenses, que vão desde a distribuição de renda por meio de cartão para famílias com criança de 0 a 5 anos e 11 meses em situação vulnerabilidade, combate à fome e entregas de Centros de Educação Infantil (CEIs).
Orçamento
Ainda que diversos estados e municípios já desenvolvam ações para os pequenos, a preservação dos direitos e da segurança dessas crianças ainda é um desafio. Especialista em Saúde e Desenvolvimento Infantil do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Tati Andrade explica que muitas cidades, principalmente as mais pobres, enfrentam dificuldades para investir em políticas públicas especializadas para a idade, tendo em vista que dependem de repasses do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) para subsistir por quase não terem receitas próprias.
Além disso, segundo ela, aportes para a educação, saúde e assistência social, por exemplo, já contemplam parte desse público.
"Um dos problemas é a lei não sair do papel, não se concretizar em benefícios. É importante que seja construída essa política, os municípios já estão bem avançados nisso, mas ainda tem capitais que não aprovaram seus planos. A gente espera que essa política nacional também reflita em orçamento, em recursos financeiros, para os estados e municípios implementarem políticas pública. Um exemplo são as creches, porque não entra na obrigatoriedade de uso dos recursos do Fundeb, depende somente do orçamento municipal. Então, apesar de a matrícula não ser obrigatória, a gente sabe que muitas famílias precisam da creche"
Estudo desenvolvido pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal com base em dados do Cadastro Único (CadÚnico) de outubro de 2023 mostra que 55% das crianças na Primeira Infância vivem em situação de pobreza. O percentual representa mais de 10 milhões de meninos e meninas com idade entre 0 e 6 anos que precisam de mais atenção dos entes federativos.
Para a CEO da Fundação, Mariana Luz, é necessário haver um monitoramento dos recursos que estão sendo aplicados em políticas para a faixa etária. Dessa forma, seria possível mapear a quantia suficiente para fazer com que as ações sejam efetivas.
"Não tem monitoramento, e você tem que saber quanto está gastando. Se você sabe quanto um município está gastando e que está funcionando, você vai conseguir identificar que o movimento ideal é esse. Tem todos esses desafios que a gente precisa olhar, eu não me sinto confortável de demandar mais recursos, ele está interligado a outras políticas, mas ninguém discrimina (o valor investido). A gente precisa unificar para ter um padrão, para ter comparabilidade e ter condição de dizer o que funciona, o que é necessário"
"A gente tem uma responsabilidade muito grande, porque não é só você ter mais recursos, mas ter recursos bem aplicados. Para você demandar mais, você precisa saber se aquilo está sendo bem investido e para onde você quer que esse recurso vá. Nós temos muitas pastas envolvidas, muitos orçamentos diferentes e, dentro desses orçamentos, a gente não consegue distinguir quanto vai para a Primeira Infância", complementou.
Sistema unificado de informações
Uma das propostas da Fundação para o Governo é elaborar um sistema unificado de informações sobre a primeira infância, que contemple desde informações sobre crimes contra o público à quantidade de vagas em creches, por exemplo.
Informações do Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH) apontam mais de 53 mil denúncias de violência contra crianças de 0 a 6 anos no primeiro semestre deste ano, que dão conta de 324 mil formas de violações contra os pequenos no Brasil.
Na Educação, lei sancionada pelo presidente Lula em maio deste ano determinou que os municípios e o Distrito Federal, com apoio dos estados e do Governo Federal, informem a demanda por vagas em creches para crianças de até três anos. A lei ainda estabelece a realização do levantamento como critério de prioridade na destinação de recursos federais para financiar a expansão das vagas.
Em abril deste ano, a organização Todos pela Educação (TPE) divulgou um estudo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que apontou uma demanda reprimida de 2,3 milhões de crianças sem acesso a creches em todo o País.
Com o sistema unificado de informações, os aportes feitos por cada pasta para a Primeira Infância estariam discriminados, o que possibilitaria saber quais investem mais e quais investem menos no público-alvo. Com as informações, parâmetros médios de gastos necessários para a efetivação das políticas públicas poderiam ser estabelecidos pelos Governos, conforme destaca a CEO da Fundação Maria Cecilia.
Mariana Luz acrescenta que um orçamento especificado vai garantir que cada ente aplique, pelo menos, um valor mínimo nas ações para essa faixa etária.
"Aqui a gente está falando de sistema de informações, é beber dos dados para saber quem foi atendido no sistema de educação, no sistema de justiça, como está a família. Hoje, a gente não tem um sistema de informações sobre esses dados de atendimento da Primeira Infância", explica.
Para a elaboração da Política Nacional, será montado um comitê intersetorial no âmbito do Governo Federal. O colegiado deve contar com um membro de 15 ministérios e quatro da sociedade civil. Tati Andrade avalia que é necessária uma participação diversa para poder pensar as várias "primeiras infâncias" no Brasil.
"Existem normativas que dizem que o Poder Público tem que oferecer formação, cultura, educação, mas a forma de ofertar pode mudar de acordo com o local, porque nós temos muitas primeiras infâncias: a rural, a quilombola, a indígena, urbana", acrescenta.
Tanto Andrade como Luz acreditam que o Unicef e a Fundação Maria Cecilia devem contribuir com o comitê para criação da política. Apesar dos desafios, elas comemoram o decreto como um avanço político para meninos e meninas que estão na fase mais importante de desenvolvimento da vida.