“Política aqui é da porta para fora” foi a frase repetida de forma unânime por quase uma dezena de pastores de diversas igrejas evangélicas de Fortaleza, nas noites de quarta (26) e quinta-feira (27), ao Diário do Nordeste. Ao serem questionados sobre os rumos eleitorais do País, tanto as lideranças quanto os seus seguidores, que representam mais de 20% do eleitorado brasileiro, disseram preferir o silêncio.
Apesar desse suposto silêncio, eles votaram de forma alinhada em 2018. Conforme pesquisa do Instituto Datafolha divulgada à época, a cada 10 evangélicos, 7 optaram pelo então candidato Jair Bolsonaro (PL). Na última semana, o Diário do Nordeste saiu em busca desses fiéis em dez igrejas da Capital, em bairros como Montese, Vila União, Serrinha, Aeroporto e Messejana.
Mesmo sob anonimato, ninguém aceitou falar sobre política. Em quase todos os casos, pastores se apresentaram à reportagem e disseram que o assunto não é tratado nos templos. Um fiel, resistente a comentar, disse apenas estar “decepcionado com os que estão aí”, “nenhum presta, no fim, serão todos julgados pelo Senhor”, completou.
“Anticristo”
Em outra igreja, no bairro Messejana, um homem disse que é preciso “seguir defendendo os valores cristãos e evitar a volta do anticristo ao poder”. Na disputa pela Presidência da República em 1989, a imagem do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi associada à de um anticristo pela Igreja Universal do Reino de Deus, liderada pelo bispo Edir Macedo, atualmente aliado do presidente Jair Bolsonaro (PL).
dos evangélicos votaram em Bolsonaro em 2018, segundo Datafolha
Ao mesmo tempo em que evitam falar de política fora das igrejas – e garantem não falar dentro delas –, os grupos religiosos, principalmente evangélicos, são disputados por lideranças políticas nacionais e locais, mesmo estando a oito meses das eleições.
De um lado, políticos de direita, na esteira de influência de Bolsonaro, tentam manter a proximidade com esses fieis. De outro, políticos de esquerda e de centro investem em acenos a esses eleitores para reverter o resultado de 2018.
No domingo (30), o pré-candidato a presidente pelo PDT, Ciro Gomes, esteve em um culto numa igreja liderada pelo deputado estadual Apóstolo Luiz Henrique (Progressistas), em Fortaleza. Nos finais de semana, pelas redes sociais, se intensificam as postagens de politicos que publicizam participações em celebrações religiosas.
O peso político dado aos evangélicos não é à toa. O forte apoio nas urnas ao atual presidente é apontado por analistas políticos e pelo próprio mandatário como fundamental para o resultado das últimas eleições presidenciais.
O valor do voto evangélico
De acordo com Priscila Lapa, cientista política e professora da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda, há diversos fatores que tornam essa parcela da população tão disputada politicamente.
“Obviamente, esse voto é disputado pelo tamanho que o segmento evangélico representa no contingente do eleitorado do País. Ele também está distribuído em todos os distritos eleitorais. (...) Além disso, é um voto que, costumeiramente, ocorre em bloco, que você consegue massificar se comparado a outros segmentos”, aponta.
Diante desse poder de mobilização, o cientista político Emanuel Freitas, professor de Teoria Política na Universidade Estadual do Ceará (Uece), diz considerar que o grande foco das atenções neste pleito deve ser justamente o eleitorado evangélico.
“Há, claro, uma preocupação com o mercado, mas essa preocupação me parece que está sendo secundarizada em relação aos evangélicos. (...). É inegável que, eu não sei se de forma superestimada ou não, esse segmento está dando as cartas para aquilo que vai ser o discurso eleitoral”, afirma.
Conforme Priscila Lapa, lideranças religiosas funcionam como intermediadoras entre lideranças políticas e seus seguidores. “Além de ser numérico, a liderança que tem apoio desses ‘intermediários’ consegue ter um aliado com poder de convencimento e de atuação muito forte entre os seus seguidores”, acrescenta.
Essa força de convencimento, segundo ela, está justamente na intersecção entre os interesses políticos, por um lado, e nos preceitos religiosos, por outro. Foi essa união, avalia a pesquisadora, que resultou na eleição de Bolsonaro em 2018 com apoio tão consolidado dos evangélicos.
Quatro anos depois
do eleitorado brasileiro em 2018 era evangélico
No entanto, para este ano, o cenário é outro. De acordo com a cientista política, após quatro anos de mandato, Bolsonaro deixa de ser uma “ideia” e passa a ter efetivamente uma gestão para ser avaliada pelos eleitores.
“Essa matemática não é trivial. Ele ter recebido apoio majoritário desse segmento em 2018 não significa que ele repetirá a mesma pujança em 2022. Uma coisa é você ser uma ideia e representar um nicho – ainda que ele tivesse histórico parlamentar –, outra coisa é você ser o chefe do Executivo, comandar uma nação que precisa falar e construir política para a sociedade, independentemente de quem votou em você”, avalia.
Agora, o presidente chega ao seu último ano de mandato longe de acumular o mesmo apoio que arregimentou na última campanha, apontam pesquisas eleitorais. De modo geral, Bolsonaro vive um dos momentos de menor popularidade, segundo as pesquisas. Além do desemprego em 11,6%, seu governo acumula inflação superior a 10%, além da crise sanitária provocada pela pandemia da Covid-19, que já matou mais de 625 mil brasileiros e foi minimizada pelo chefe do Executivo nacional.
“O eleitor evangélico também tem sua percepção sobre desemprego, inflação e outras variáveis, então ele começa a tentar buscar representação olhando também para esse conjunto como um todo. Não significa necessariamente que um evangélico vai eleger um candidato progressista, mas também não há um impeditivo de que aconteça”, conclui Lapa.
O receio de alguns aliados do presidente é de que isso também se reflita nas disputas proporcionais. Para tornar a situação ainda mais crítica para Bolsonaro no segmento evangélico, ele está empatado nas intenções de voto com seu principal adversário, o ex-presidente Lula.
Empate técnico
Conforme pesquisa do Instituto Inteligência em Pesquisa e Consultoria (Ipec) – antigo Ibope –, o ex-presidente recebe 34% do apoio dos evangélicos, enquanto Bolsonaro tem 33%. O cenário é considerado de empate técnico, já que a pesquisa, realizada entre os dias 9 e 13 de dezembro de 2021, com 2.002 pessoas de 144 cidades, tem margem de erro de 2 pontos percentuais para mais ou para menos, com nível de confiança de 95%.
Na pesquisa espontânea – quando a lista de candidatos não é apresentada –, Bolsonaro aparece com 31% de apoio e Lula com 26%. Uma rodada de pesquisa feita pelo Datafolha apontou ainda que, para 43% dos evangélicos, Lula foi o melhor presidente do Brasil. Bolsonaro foi escolhido por 19%. O levantamento foi realizado entre 13 e 16 de dezembro do ano passado. Ao todo, 3.666 pessoas foram entrevistadas.
“O que as pesquisas estão captando é uma possível divisão do bolo eleitoral entre Lula e Bolsonaro. Isso ocorre porque os governos Lula também acenaram para esses setores. O vice dele, José Alencar, era de um partido (PL) ligado à Igreja Universal, que tinha vários membros em ministérios”, ressalta Emanuel Freitas.
“Ainda tem uma certa lembrança de ascensão econômica que esse eleitorado reputa, em partes à chamada teologia da prosperidade. Então, coincidiu que ‘as bênçãos que o Senhor me deu foram realizadas durante o governo Lula’”, acrescenta o analista.
Bolsonaro e os evangélicos
Já no caso de Bolsonaro, os movimentos do presidente – e de seus aliados mais próximos – em direção ao eleitorado evangélico não são recentes. Antes de se candidatar oficialmente, ele já defendia valores alinhados ao que é pregado entre grupos evangélicos hegemônicos.
Durante a campanha, ele levou para seu lado figuras reconhecidas no meio, como o ex-senador Magno Malta (PL). Na escolha dos ministérios, convidou nomes como Damares Alves (Mulher, da Família e dos Direitos Humanos) e Milton Ribeiro (Educação), ambos evangélicos.
“Bolsonaro teve uma estratégia interessante, que foi fidelizar as lideranças evangélicas. Durante a campanha e agora no Governo, ele mantém relação de proximidade com as lideranças das principais igrejas”, destaca Emanuel Freitas.
Essa proximidade com as lideranças para se chegar às bases é também ressaltada por aliados do presidente. Correligionária de Bolsonaro no Ceará, a deputada estadual Dra. Silvana (PL) aponta esse como um indicativo de que o apoio ao presidente por parte dos evangélicos será ainda maior neste ano, contradizendo as atuais pesquisas eleitorais.
“Na história deste País, não existiu nenhum presidente que agradasse tanto ao setor evangélico, que estivesse tão afinado com as nossas bandeiras, com as nossas causas, que nos valorizasse tanto”, afirma.
Em julho do ano passado, Bolsonaro cumpriu uma promessa do primeiro ano do Governo e indicou André Mendonça, um ministro “terrivelmente evangélico”, ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Para a deputada, isso “coroou” a adesão dos evangélicos ao bolsonarismo. “(Em 2018) Víamos a resistência de alguns irmãos por (Bolsonaro) ser ainda desconhecido, falavam de tortura, que sabemos que esses fakes, essas atribuição caíram por terra, e a igreja está muito satisfeita em como Bolsonaro priorizou o setor evangélico”, conclui Silvana.
“Vamos procurar sempre políticos que valorizem a família, a pureza das crianças, contra o aborto, contra a ideologia de gênero, que combatam as drogas e que haja o respeito à nossa fé cristã. O que queremos é que haja esse respeito. Não à cristofobia, mas sim o amor ao cristianismo”, acrescenta o deputado estadual Apóstolo Luiz Henrique.
Apoio durante a campanha
Para Emanuel Freitas, essas ações, de fato, podem surtir efeito nas eleições, principalmente com os movimentos constantes do presidente em direção às lideranças evangélicas.
“Quando a campanha começar são outros quinhentos. Bolsonaro vai lembrar tudo que fez para esse segmento, a própria atuação do ministro André Mendonça será toda ela reputada pelos evangélicos ao presidente Bolsonaro, então, quando a campanha começar, haverá uma mobilização mais aberta das igrejas”, avalia.
Conforme levantamento feito pelo Diário do Nordeste, “eventos religiosos” estão entre os principais motivos das viagens do presidente pelo Brasil desde que tomou posse. Outra evidência dessa proximidade são as bases eleitorais.
No Ceará, por exemplo, a base bolsonarista é majoritariamente evangélica. Parlamentares como Priscila Costa (PSC), André Fernandes (PL), Dra. Silvana (PL) e Dr. Jaziel (PL) são declaradamente evangélicos e bolsonaristas.
No embalo do diálogo com a base religiosa, o partido Republicanos tem sido disputado também no Ceará. Com líderes religiosos, como o vereador de Fortaleza e ex-deputado Ronaldo Martins e o deputado estadual David Durand, o partido apoiou Capitão Wagner na disputa pela Prefeitura de Fortaleza, em 2020.
Para 2022, no entanto, estão em curso negociações para atrair o partido para base do governador Camilo Santana novamente. A afirmação foi dada pelo senador Cid Gomes, do PDT, durante convenção que oficializou a pré-candidatura de Ciro Gomes, neste mês.
Base no Ceará
Capitão Wagner (Pros), pré-candidato anunciado por Bolsonaro como seu representante na disputa pelo Governo do Ceará neste ano, costuma publicar fotos nas redes sociais em eventos evangélicos.
“A eleição municipal de Fortaleza em 2020 serviu para o segmento evangélico dizer que tinha um candidato e era Capitão Wagner (Pros). Depois da eleição, ele continuou nessa perspectiva de representação do bolsonarismo no Ceará e de uma agenda de candidatura cristã”, aponta Emanuel Freitas.
“O que temos é que os parlamentares ligados ao segmento evangélico são bastante ruidosos, afeitos a polêmicas e com profundo conhecimento daquilo que tramita nas casas legislativas, então logo que um projeto que não condiga com seus interesses é apresentado por outro parlamentar, imediatamente esse projeto é divulgado nas redes sociais, é problematizado, é questionado, a militância cristã é convocada a protestar”, afirma.
Religiosos vs Inimigos da fé
Para o cientista político, esse “modus operandi” desfavorece a oposição, que ganha a pecha de “inimigos da fé”. “Não falta pra eles oportunidade de polemizar e tentar construir uma oposição de antítese entre eles, que seriam os defensores da fé, e os outros deputados, principalmente de esquerda, são os inimigos da fé, de tal modo que se eles continuarem com o poder a fé cristãs encontram-se-ia em perigo de extinção”, concluiu.
Seja a nível estadual ou a nível nacional, lideranças políticas da oposição ao presidente Jair Bolsonaro já têm se movimentando para tentar atenuar essa imagem de “oposição aos cristãos”. Grupos minoritários de evangélicos também têm fortalecido a oposição ao atual mandatário.
Em setembro do ano passado, por exemplo, a Igreja Betesda do Ceará divulgou uma carta em defesa da democracia e contra o presidente.
“O Evangelho não se sujeita a um projeto institucional de poder, mas não deixa de se traduzir em consciência política e indignação frente à injustiça e às ameaças ao estado democrático de direito. Condenamos a evidente aliança entre pastores, pastoras e igrejas evangélicas com o projeto político que levou ao poder o atual Presidente da República”, escrevem na carta lideranças do grupo.
“Reputamos como escandalosa a adesão de evangélicos a um projeto autoritário, que se funda sobre o medo e a incerteza, às custas de teorias da conspiração, negacionismo e distorções mentirosas da realidade; tanto quanto o discurso que faz do armamento da população a garantia violenta de liberdade”, segue a carta, que busca ainda reforçar que há grupos de evangélicos contrários ao presidente.
PT e os evangélicos
No caso de partidos políticos, o PT, por exemplo, planeja lançar um programa voltado ao público evangélico nas mídias digitais da sigla. Em evento virtual da legenda, no fim do ano passado, Lula disse que o PT "não pode acreditar na história de que os evangélicos e as evangélicas são como se fossem um gado". A legenda também tem promovido encontros com lideranças da própria sigla que se declaram como evangélicas.
Eu não faço distinção de católico, evangélico, de ateu. Eu falo com seres humanos. E eu duvido que algum presidente tenha respeitado mais os evangélicos que eu, com mais respeito e mais decência. O Estado segue sendo laico.
— Lula (@LulaOficial) January 15, 2020
“O PT tem feito lives com evangélicos, mas são nomes como a Benedita da Silva, que é do PT, e outras lideranças que me parecem destoar um pouco do discurso evangélico hegemônico. Por mais que a gente saiba que o segmento é muito plural, mas tem um discurso hegemônico, que faz mais barulho e arrebanha mais fiéis, que é o pentecostalismo”, analisa Emanuel Freitas.
Encontro de Lula com evangélicos https://t.co/OcHO6vNbkF
— Lula (@LulaOficial) November 27, 2021
Aceno de Ciro Gomes
No caso do PDT, Ciro Gomes, em vídeo divulgado nas redes sociais, defendeu que a Bíblia e a Constituição não são livros conflitantes. Empunhando as duas obras, ele ressaltou a laicidade do estado, mas ressaltou que o Brasil nasceu a partir do cristianismo.
"O Brasil é uma República laica, ou seja, o estado tem vida independente das igrejas, e as igrejas têm vida independente do Estado. Mas estes livros não são conflitantes, ao contrário. Nossas leis não permitem favorecer uma religião sobre as outras, nem os brasileiros que têm fé sobre os que não têm", afirmou.
"Esse princípio republicano, porém, não nos deve levar à negação de uma realidade histórica, com consequências sempre atuais: o Brasil se formou no berço do cristianismo. E são dois os aspectos da mensagem cristã que devem falar fundo no coração de qualquer brasileiro”, acrescentou.
Ontem (30), o pré-candidato, no entanto, participou de evento na Igreja do Senhor Jesus, em Fortaleza, ao lado do ex-deputado federal Cabo Daciolo (Brasil 35), que desistiu de ser pré-candidato em 2022 para apoiar Ciro. Ele entra na campanha como importante mobilizador do eleitorado religioso.
Moro e a carta aos evangélicos
Outro pré-candidato que tem se aproximado de evangélicos é o ex-ministro Sergio Moro (Podemos). No fim de dezembro de 2021, ele teve um encontro com o pastor R.R. Soares, fundador da Igreja Internacional da Graça de Deus. No início deste ano, durante viagem à Paraíba, ele também se reuniu com o pastor Estevam Fernandes, presidente da Primeira Igreja Batista de João Pessoa.
Para a campanha, o ex-magistrado conta com o apoio de Uziel Santana, fundador e ex-presidente da Associação Nacional dos Juristas Evangélicos (Anajure). Ele é um dos responsáveis pela produção da “carta aos evangélicos”, uma mensagem que Moro planeja divulgar no próximo dia 7 fevereiro em Fortaleza. A expectativa é de que cerca de 200 pastores participem do ato.
Estive reunido em São Paulo com pastores e líderes de igrejas evangélicas históricas. Falamos de valores, princípios e da relevância do segmento para um projeto de Brasil justo para todos. pic.twitter.com/UFoPDMK83V
— Sergio Moro (@SF_Moro) December 8, 2021
No texto, Moro deve criticar as políticas de “ideologia de gênero” e se posicionar de forma contrária a flexibilizações na legislação sobre o aborto. A mensagem também deve ter um cunho de valorização da política e de combater a corrupção.
Para Emanuel Freitas, a busca pelas bases evangélicas é o caminho que restou aos outros pré-candidatos, já que Bolsonaro mantém firme a aliança com as lideranças.
“É o caminho que restou às outras lideranças, porque Bolsonaro tratou de fidelizar os líderes das igrejas, então, para os outros candidatos, sobretudo Lula, que sofreu uma campanha de muito descrédito, negativação e deslegitimação, o que sobra é tentar entrar pela via do eleitorado, dos fiéis, do rebanho, em vez da via dos pastores”, conclui.