Quando a II Guerra terminou e os campos de concentração e extermínio foram abertos escancarado o horror e a monstruosidade do Holocausto, os prédios e espaços que guardaram tanta dor e desumanidade emergiram como problema aos estados pós-guerra: o que fazer com esses monumentos traumáticos e trágicos. Muitos – até alguns judeus libertos – desejavam ver esses lugares e memórias destruídos, fingir que não existiram, ocultar a dor, mas, traumas silenciados em algum momento emergem, assombrando os que pretendiam fugir do passado.
O Ceará também teve campos de concentração, espaços de segregação e trabalho que isolaram indesejados e marginalizados antes mesmo que os nazistas levantassem seus muros. Os prisioneiros, eram tidos pelo fascismo como indesejados, impuros, inferiores e podiam ser usados e descartados em políticas sobre vidas, mortes e existências.
Os nossos prisioneiros eram também corpos e existências indesejados e desprezados pelo Estado e pelas elites locais. Sim, nossos. Essa também é nossa história e é nossa responsabilidade histórica, dever de memória.
Não queremos igualar os campos de extermínio nazistas com os espaços de reclusão que existiram no Ceará. Isso seria extremo, mas entendemos que eles partilham a mesma lógica, a mesma essência.
Mesmo que não tenha ocorrido um genocídio como intenção, como projeto institucionalizado, houve um "morticídio" catastrófico como consequência de uma necropolítica permitida, um descaso social e político que tanto gerou quanto apagou uma política de isolamento e descarte.
A história dos campos de concentração no Ceará origina-se na seca de 1877, quando a estiagem deslocou milhares de retirantes para Fortaleza. Levas de miserabilizados pela escassez de água e pelo descaso do coronelismo, que na Fortaleza da “Belle Époque” tensionaram o embelezamento e a modernização da capital.
Para evitar que o caos dessa seca se repetisse surgiram os campos. Os registros oficiais apontam a existência de três concentrações em Fortaleza: o Alagadiço (atual São Gerardo), em 1915, e os campos do Matadouro (Otávio Bonfim) e do Uburu (Pirambu), em 1932.
Para evitar os "flagelados", criaram-se abarracamentos – barracas espalhadas pela cidade. O Estado concentrou os migrantes que chegavam, contidos e forçados a trabalhar em meio à doença e à fome. Os retirantes viraram massa de manobra barata, a alta mortalidade e a anonimidade desses indivíduos gerou covas coletivas, os isolamentos tão precários que tinham um “apelido” muito apropriado a sua visão de mundo: os “currais” da seca.
Os judeus eram tratados pelos nazistas como ratos. Os nossos irmãos, já fragilizados pela seca, eram tratados como gado. A desumanização é parte fundamental da lógica dos campos.
O primeiro curral surgiu na seca de 1915, substituindo os chamados abarracamentos e ampliando cenários de pobreza. Findado o período de estiagem, o campo foi desfeito, mas a cada seca, novos campos surgiam estrategicamente como postos em rotas de migração para evitar que os flagelados “infestassem” as cidades. Na estiagem de 1932, além de Fortaleza, foram criados os currais de Crato, Senador Pompeu, Quixeramobim, Cariús e Ipu, isolando as cidades e principalmente a capital.
O historiador e professor da UFC, Frederico de Castro Neves, em diversos trabalhos aborda como o silêncio sobre a existência dos campos, a ausência de centros de memória e documentação prejudicam a problematização das tragédias e impedem que seu combate se insira em nossa organização coletiva.
Os campos provisórios – desfeitos imediatamente após o fim de sua utilização – mesmo carregados de tragédias e calamidades individuais e coletivas são desconhecidos pela maioria de nossa população.
Somente o campo do Patú, em Senador Pompeu, tinha instalações de alvenaria que resistiram ao tempo, tombadas em 2022 como sítio histórico e patrimonial.
Após muita disputa, patrimonializou memórias que levavam romeiros e religiosos há procissões anuais ao “campo santo” em memória das “vítimas da barragem”. Mais de 20 mil pessoas foram ali encarceradas sem terem cometido crime algum. A maioria não sobreviveu. Milhares de mortes da seca santificados popularmente pela dor resistente de uma gente que se recusa a esquecer.
O tombamento em Senador Pompeu amplifica o silenciamento em Fortaleza. A ausência de resquício físicos relega ao esquecimento esse capítulo cruel da história, mas não justifica de todo o apagamento. Isso é escolha atual, permanecemos decididos a esquecer essa história incômoda.
A invisibilidade dos marginalizados dissimula os horrores vivenciados. Reafirmamos, no entanto, a necessidade apontada em nosso último texto de tocar nessas feridas dolorosas, de lembrar as experiências violentas e traumáticas enquanto patrimônio formativo de nossa identidade, no que a professora Cristina Meneguello chama de patrimônio “do trauma e da dor”. Pensar nelas nos coloca diante de reflexões morais inescapáveis.
Certa vez, conversando com uma querida amiga e diretora que viveu a infância toda de frente à Estação do Otavio Bomfim, parada final dos trens que traziam produtos e retirantes do interior por décadas, uma das principais estações do estado até sua desativação, o lugar foi central à comunicação com a capital, onde os flagelados eram recebidos e isolados.
A professora Socorro cresceu cercada pelo muro que protegia os trilhos e os separava dos moradores. Ela se surpreendeu com a notícia sobre os campos. Tendo crescido correndo entre vagões e transeuntes, desconhecia que sua casa ficava sobre a memória de tantas tragédias.
Investigando o caso após nossa conversa, encontrou resquícios de memórias entre os mais velhos de seu entorno sobre os pobres e miseráveis, vestidos de saco, com cabeças raspadas e descalços enquanto trabalhavam nas obras de infraestrutura da cidade.
Hoje há no lugar o Bosque dos Ferroviários, uma praça em homenagem aos trabalhadores e ferrovias da modernização do Ceará. Mas, sobre o caos, a fome, a peste e a morte que seguiram pelos trilhos do trem até o enclausuramento há praticamente apenas silêncio.
No meu último texto falamos dos homens, mulheres e crianças enviados a instituições de sequestro, falamos de um “holocausto brasileiro”, ressaltamos que a comparações de tragédias é algo indevido, mas os nomes e os temas dramáticos buscam gerar visibilidade sobre as nossas tragédias, mais próximas, menos conhecidas e igualmente terríveis ante os crimes nazifascistas.
Em 2018, um vagão de trem foi colocado no bosque dos ferroviários provocando lembranças, mas, mostrando o limitado alcance da memória sobre os campos. O vagão, cedido pela Transnordestina, faz uma rápida e discreta referência à existência do campo, uma frase, pintada na parede é o único marco a referenciar este fato histórico.
Ao fim da guerra os nazistas tentaram destruir o legado de seus crimes, mas resquícios materiais permaneceram como espectros, no Ceará fomos muito mais eficientes em nos livrar dessas provas. Hoje o vagão aparece como um vestígio abandonado, um trem fantasma em uma das vias mais movimentadas da cidade como que a assombrar a cidade sobre seu criminoso silêncio.