Assim como em Jeri, empresário disputou posse de Fortim há 30 anos; conheça a história

Escrito por
Bruna Damasceno bruna.damasceno@svm.com.br
(Atualizado às 12:56)

Há pouco mais de 30 anos, Fortim foi palco de uma disputa territorial semelhante à que Jericoacoara enfrenta atualmente. Em 1993, o empresário João Gentil Júnior reivindicou a propriedade das terras do município cearense em questão, alegando se tratar de um bem dele.

Segundo matérias publicadas no Jornal Diário do Nordeste, Gentil afirmava ser dono de toda a área urbana, abrangendo 90% da cidade de Fortim.

O processo de reivindicação de posse chegou a interromper a construção do Centro de Cultura e Artesanato, de Abastecimento e a Delegacia de Polícia do município, mas as obras foram retomadas e concluídas posteriormente. 

Notícia publicada em novembro de 1993, no Jornal Diário do Nordeste, reportou que a força da comunidade teve uma vitória quando a Justiça permitiu a conclusão e a entrega desses equipamentos públicos. 

“A vontade de João Gentil, porém, não prosperou, e de imediato o prefeito Caetano Guedes conseguiu, junto à desembargadora Águeda Passos, derrubar a liminar concedida na época pelo juiz de direito Edvalson Florêncio Marques Batista, da 2ª Vara da Comarca de Aracati", diz o texto.

Em 1995, a disputa continuava. A situação levou ao afastamento do prefeito da época por 48 horas. Conforme noticiado no Diário do Nordeste, os relatos eram de que o empresário João Gentil, quando Fortim desmembrou-se de Aracati (1992) para tornar-se município, procurou o primeiro prefeito eleito, Caetano Guedes, alegando ser o proprietário de “90% das terras do recém-criado município”.

Como o Diário relatou à época, "o prefeito teria solicitado ao empresário que abrisse mão das terras onde famílias residiam há mais de um século. João Gentil não teria concordado, daí o interesse em afastar da prefeitura aqueles que não apoiassem a eventual e futura desapropriação das terras".

Após dois dias, o prefeito retornou ao cargo com o apoio da população, que dizia palavras de ordem como 'Fora, grilheiros'. Uma moradora disse: "O clima era de intranquilidade. O povo se sente inseguro, mas com a garantia de posse do prefeito Caetano, a situação foi revertida. Em Fortim, a questão central se tornou econômica e latifundiária. A política ficou em segundo plano. Os direitos populares estavam ameaçados por um grupo de empresários e latifundiários que se diziam donos da cidade".

Outra questão era que a escritura das terras apresentada pelo empresário não era reconhecida pelo Estado. Além de negócios em Fortim, Gentil foi o idealizador do projeto Porto das Dunas. 

A coluna pediu à Procuradoria Geral do Estado (PGE) esclarecimentos sobre o status final do processo judicial no qual o empresário pleiteava a propriedade de Fortim, mas não recebeu as informações até esta publicação. Quando a resposta for enviada, esta coluna será atualizada. 

A Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace), em resposta a nosso pedido de informações, disse não haver, no âmbito de suas competências, processos relacionados aos terrenos e ao empresário em questão. 

A coluna não conseguiu contato com a gestão de Fortim, exceto com o secretário de Turismo, Flávio Marcelo, em 11 de janeiro. Ele informou que buscaria mais informações, mas não houve retorno da administração municipal até o fechamento desta matéria.

Jericoacoara: a história se repete 

Agora, em 2023, a empresária Iracema Correia São Tiago protagonizou episódio análogo: ela afirma que 80% das terras de Jericoacoara são dela. O processo ainda está em andamento. 

Um acordo foi firmado, sem participação da comunidade, segundo o Conselho Comunitário de Jeri. Em outubro do ano passado, o Ministério Público do Estado (MPCE) recomendou a suspensão do acerto.

Como surgem esses ‘donos’ das cidades

Esses dois casos emblemáticos no Ceará provocam a reflexão sobre por que, historicamente, grupos e famílias se consideram donos de uma cidade e quais as consequências disso para a coletividade. 

O estudo 'Terrenos da desigualdade', da confederação internacional Oxfam Brasil, explica que a história do País é marcada pela concentração de terras, agravando desigualdades e impedindo o desenvolvimento sustentável. 

“A relação entre o exercício de poder e a propriedade da terra se consolidou ao longo da formação do Brasil. Presente desde a época da colonização até 1832, o sistema das Sesmarias concedia terras brasileiras a amigos do rei", diz o relatório. 

Em 1850, esse modelo foi substituído pela Lei de Terras, cuja finalidade era acabar com a aquisição gratuita de terrenos, definindo que só teria acesso quem pudesse pagar por ele.

Contudo, as consequências dessa legislação, já extinta, são vistas até hoje: as terras continuam concentradas nas mãos de poucos. Os tais "donos" das cidades são, portanto, um legado desse capítulo da história brasileira.

Em 1988, com a Constituição, as questões socioeconômicas envolvendo as propriedades passaram a ser consideradas na reforma agrária, com o objetivo de redistribuí-las. Mas, até hoje, a medida não conseguiu solucionar completamente esse problema.

Para se ter ideia, essa desigualdade fundiária histórica repercute em uma rígida desigualdade de gênero, com os homens controlando a maior parte dos estabelecimentos rurais e detendo 87,32% dos estabelecimentos e 94,5% das áreas rurais brasileiras.

Os novos desafios de Jeri e Fortim no Brasil de hoje

Hoje, Fortim e Jeri compartilham outra semelhança: a reconfiguração da dinâmica a partir da chegada de empreendimentos de luxo. Nesse novo contexto, é preciso pensar sobre os impactos sociais e ambientais gerados pelos negócios que ali se instalam.

Embora as novas empresas estimulem a economia local, a geração de empregos não deve servir para justificar a exploração desenfreada de recursos naturais ou para legitimar os danos causados à sociedade e ao meio ambiente. 

Inclusive, do outro lado da duna de Fortim, a comunidade do Cumbe, em Aracati, sofre a perda de sua identidade em razão das instalações de parques eólicos, os quais, teoricamente, deveriam contribuir para um desenvolvimento sustentável e justo.

O documentário 'Filhos do vento', dos cearenses Euziane Bastos e Rogério Bié, mostra esse outro lado da história:

Desbravando Fortim: do paraíso à primeira indústria da charqueada 

Se você nunca foi a Fortim, distante cerca de 135 km de Fortaleza, pelo menos já se deparou com imagens convidativas de um mar todinho azul contornando a cidade. É um sintoma comum, após esse contato visual, querer se embrenhar nessas águas iluminadas pelo sol e se aventurar em um barco pelo Rio Jaguaribe.

É literalmente um cenário de novela, como foi em 1995, para as gravações de "Tropicaliente", da Rede Globo. E também de filme, como em 2011, com o longa “Não se Preocupe, Nada Vai Dar Certo”.

Mas nem só de cartão postal se fez Fortim. Há muita história, sobretudo ligada à economia cearense, no século XVIII. Atualmente, a cidade vive da pesca industrial e do turismo. No entanto, essas terras já foram o principal centro da charqueada no Ceará, quando ainda era distrito de Aracati.

Com o gado proveniente de Pernambuco e do Rio Grande do Norte, a carne era prensada, salgada e desidratada ao sol e ao vento para essa indústria, localizada às margens do Rio Jaguaribe. O objetivo era reduzir as perdas de gado por mortalidade ao diminuir o tamanho do rebanho no fim da jornada. 

Entretanto, a seca prolongada entre 1777 e 1779 fez charqueiros migrarem para Pelotas, no Rio Grande do Sul. Enquanto o mercado gaúcho prosperava com essa técnica em um clima mais favorável, o rebanho cearense definhava devido à estiagem. 

4 pontos que você precisa saber

O que é ESG?

ESG é a sigla, em inglês, para Ambiental, Social e Governança (Environmental, Social and Governance). O conjunto de práticas visa reduzir os impactos ambientais provocados pelas empresas e desenvolver um sistema econômico justo e transparente. Por isso, pode contribuir para a descarbonização da economia, termo usado para a redução da emissão de dióxido de carbono (CO₂), principal gás responsável pelo efeito estufa. ESG surgiu em um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), em 2004, e também está atrelado aos Objetivos de Desenvolvimento da ONU.

Por que o ESG é importante para o consumidor?

O ESG é importante para toda a sociedade, considerando que o País é marcado por assimetrias socioeconômicas, herança do período colonial, escravista e de uma cultura patriarcal. Por isso, pode promover mudanças de equidade no mercado de trabalho, além de reduzir os impactos ambientais dos negócios, sobretudo em um contexto de crise climática. Compreender a importância da agenda ESG ajuda a tomar decisões de consumo baseadas em práticas ambientais e sociais, pressionando os negócios a se adequarem.

O que é a Agenda 2030?

A Agenda 2030 é um compromisso global firmado pelos 193 Estados-membro da ONU, com o objetivo de gerar desenvolvimento sustentável nas dimensões econômica, social e ambiental, considerando as prioridades de países e localidades. Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) são parte da Agenda 2030

O que é o Acordo de Paris?

O Acordo de Paris é um pacto internacional voltado para conter o aquecimento global, aprovado como lei doméstica por 194 países e pela União Europeia, em 2015. Pelo tratado, a meta era manter o aquecimento abaixo de 2ºC e, na medida do possível, 1,5ºC.

Além dos arquivos do jornal Diário do Nordeste, a bibliografia consultada foi:

Girão, V. C. (1996). As charqueadas. Revista do Instituto do Ceará. Recuperado de https://www.institutodoceara.org.br/revista/Rev-apresentacao/RevPorAno/1996/1996-AsCharqueadas.pdf 

Frota, L. F. R., & Gondim Neto, L. (n.d.). CHARQUEADA: A HISTÓRIA DA CARNE DE SOL NO CEARÁ E SUA ROTA DO ICÓ AO ARACATI. Educação e Utopia, 1(1). Recuperado de http://www.periodicos.ufc.br/eu/article/view/17601

Braga, R. (1996). Um capítulo esquecido da economia pastorial no Nordeste. Revista do Instituto do Ceará. Recuperado de https://www.institutodoceara.org.br/revista/Rev-apresentacao/RevPorAno/1947/1947-CapituloEsquecidoEconomiaPastorilNordeste.pdf.

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