Tem uma geração de classe média do interior do Ceará que nunca escolheu morar em Fortaleza, mas foi porque era um caminho natural nos anos 1990. Assim mesmo, sem questionamentos. Com nove ou dez anos, quem podia já ia embora para a capital em busca de futuro. Eu, por exemplo, tinha dez quando deixei o Cedro e viajei 420 quilômetros para longe dos meus pais.
Achei que seria apenas um intercâmbio de seis meses na estranha Fortaleza e chorei horrores quando minha mãe contou que eu não voltaria mais enquanto eu já tava era em contagem regressiva para voltar à minha cidade.
Fortaleza era tão estranha que as padarias sequer vendiam pão carteira, nem pão recife, nem mangangá. Aqui a gente descobriu que comprar carne de gado já não era tão simples. Tinha que saber escolher entre maminha, patinho, alcatra. No interior, era tudo mais simples: quer carne de gado, de porco ou galinha?
Em Fortaleza, não. Talvez por isso nossos pais ou avós costumavam mandar uma pequena feira pra gente não esquecer nossos sabores: um doce de leite caseiro numa lata de Neston reaproveitada, um queijinho fresco, uma garrafa pet com feijão de corda e por aí vai. Até pão de arroz, que achei que era tão popular como o nosso amado cuscuz, era impossível de achar.
Mas como não era só um intercâmbio pra mim, não teve jeito. Tive que me curvar à experiência que até hoje rende à minha geração algumas risadas e muitos traumas. Vivemos uma espécie de choque cultural intermunicipal. Já pensou na presepada?
Fortaleza, que acha que não tem sotaque, nos fez usar artigos para falar até de pessoas com quem sequer temos intimidade. Olha o disparate! “Vou lá em Chico Humberto” virou um afrescalhado “Vou lá no Chico Humberto”. Pedir “bombom-chiclete” na mercearia era motivo de chacota, então tínhamos que pedir “sambol”.
Fora o amplo vocabulário que a capital não quis alcançar: bocal da caneta, grafite para se referir à lapiseira, etc. Tudo démodé? Fortaleza também não alcançou a força expressiva e indignada do nosso “nã, mulher, vôôôôte”.
Tudo era motivo de chacota na classe média da capital, aquela que já ia pra Disney e falava inglês enquanto a gente tava descobrindo que pra “rachar” uma pizza com uma amiga tinha que ter dinheiro, não era só comer. Ou que, quando o ambulante entregava jujuba no ônibus, não era um mimo que a gente podia comer mesmo estando liso.
Uma amiga de Limoeiro do Norte lembra que, logo que chegou na capital, já percebeu que seria difícil se comunicar em algumas situações. Primeiro dia em Fortaleza e sua missão era comprar um chiptim 85 para não pagar roaming. Foi no Centro, entrando de loja em loja especializada e perguntando:
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Moça, aqui tem chiptim?
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Não, tem isso aqui não.
Ouviu isso tantas vezes que se indignou. “Como pode não ter um chiptim numa cidade desse tamanho?”. Cinco lojas depois, achou enfim um vendedor paciente.
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Moço, pelo amor de Deus. Me diga que aqui tem chiptim pra vender.
Ele também não entendeu, mas pelo menos foi conversando e percebendo o sotaque diferente até cair a ficha de que não era uma palavra só. Ela precisava, em bom fortalezencês, de um “chip da Tchim”.
Pois bem. Chegamos em uma Fortaleza de poucas bicicletas e longas distâncias. Tudo era “bem ali”, mas levava tantos quarteirões e tempo de caminhada que, quantas de nós não fomos castigadas por inventar de voltar do colégio a pé e demorar a chegar em casa? Também foi na capital que descobrimos que não era necessariamente óbvio que todos iríamos ao enterro de um conhecido que morreu. Até o luto em Fortaleza era esquisito.
A verdade é que nunca nos sentimos exatamente fortalezenses. E o melhor de morar em Fortaleza eram os encontros com os conterrâneos, fosse nas tardes de cinema no shopping ou nos forrós. Ok. Tínhamos também o nosso próprio case a la topic 55: pegar o ônibus seletivo rumo ao interior, com o ar-condicionado no máximo para muitas horas de reclamações por quem não havia levado lençol enquanto uma TV de tubo exibia uns três filmes de ação. Às vezes até quatro, a depender se o ônibus dava o prego.
Mas era aquilo: terminavam as férias, hora de voltar com a mala cheia de comida. Quando acabava, para reencontrar um pouco desse gosto da terra da gente, só mesmo num passeio pelo Mercado São Sebastião. Queijo de manteiga do Jaguaribe, o carneiro do Tauá, a manteiga da terra do meu Cedrim. Lá, certamente você ainda hoje vai encontrar um conterrâneo que não ficou com sotaque-de-lugar-nenhum, como a maioria de nós. São poucos os que venceram este trauma, como uma amiga da Aiuaba que hoje diz, orgulhosa: “o bullying desistiu de mim”.
Uma coluna dedicada às amigas de várias cidades que fizeram esse percurso comigo: Larissa, Lis, Lorena, Márcia e Domitila.