Vanda Cariri desacostumou com o silêncio. Cresceu na Chapada do Araripe, no sul do Ceará, ouvindo do avô que não deveria comentar que era indígena, que naquela terra não se podia dizer que havia índio. Viu então a história do seu povo adormecer na memória enquanto crescia sabendo sozinha quem era. "Meu sonho era estudar genética para saber se eu era indígena mesmo", ela conta. E foi.
Enquanto cursava a universidade de Biologia, ouviu de um professor que não era a indígena que é, porque não tinha cabelos lisos e olhos puxados. Seguiu a vida por outros territórios para fazer mestrado e doutorado. Quando voltou ao Poço Dantas, seu território ancestral na Chapada do Araripe, se perdeu.
"Entrei em choque. Não conhecia mais meu lugar", lembra.
As obras para construir açude (e depois o Cinturão das Águas) levaram a casa da mãe dela e até mesmo o pé de oiti que seu povo cultuava - aquele mesmo onde ela recebeu seu anel de formatura e onde a mãe pariu ao menos sete dos dez filhos que teve. Mas Vanda reencontrou a história de seu povo Cariri - com C como está na certidão dos parentes em resistência - e agora vive em retomada pela terra, pela cultura e pela identidade. Ela sonha com uma escola indígena que possa apagar o silêncio em que os indígenas da Nação Kariri mergulharam durante tanto tempo.
Tudo começou quando Tereza Cariri, sua tia, viajou a Crateús e foi encorajada a mergulhar no movimento de retomada junto a outros parentes Kariri (com K, espalhados em várias aldeias). Retomada é quando um povo ocupa e demarca seus territórios tradicionais por si mesmos. Tereza se encantou recentemente, mas deixou seu legado. "Começamos com 30 famílias e hoje temos em torno de 150", diz Vanda.
Já se vai bem mais de uma década deste movimento que foi conquistando água e cobrando seu espaço. Mas a luta ainda é distante. Está expressa, por exemplo, na tristeza da parente Rosa Cariri, que diz que sua maior tristeza é ver chover e não ter mais terra para plantar. Mas Vanda não esmorece com a jornada que ainda está por vir: "A maior conquista que já tivemos foi poder andar de cabeça erguida e não ter mais vergonha de ser Cariri". A retomada do povo Kariri está conectada com ao menos mais 15 etnias que vivem em todo o Ceará. "A luta é em rede", explica Vanda.
A mulher de cabelos enrolados sempre soube que era indígena. Cresceu vendo os parentes plantarem coletivamente em suas tiras de terra e a forte conexão do pai com a mata e a terra. Como negar a cantoria da caboclinha na beira da fogueira? As panelas de barro de tia Olinda e Tudinha, o traçado de cipó do cacique Milton, os saberes que transformam jatobá, jurema e jenipapo em cura? De onde vem a disposição circular de sua casa? "Eu sempre senti que era indígena, mas não tinha instrumento para ecoar essa voz", diz Vanda.
Ela sabe que é mais uma, dentre tantas mulheres que protagonizam essa luta para recuperar a história de um povo. A luta de Vanda é a mesma de Rosa, de Ana e dos troncos velhos que habitam o território. A essência dela descerá a Chapada do Araripe no próximo dia 26 de outubro para ecoar a voz do povo Kariri no toré apresentado no Centro Cultural do Cariri, durante o Festival Unaé, no Crato.
Unaé, na língua do povo originário Kariri, significa sonhar. E Vanda sonha em conquistar uma escola pública indígena, que respeite as particularidades da cultura de seu povo, que diariamente se conecta aos encantados e à energia do cosmo e da natureza. "Nós, indígenas, não somos passado, somos presente. A grande diversidade cultural que se manifesta nesse território vem de uma herança ancestral", finaliza.