A crise econômica agravada pela pandemia da Covid-19 reforçou estratégias comerciais que até pouco tempo eram impensáveis. Frigoríficos da periferia de Fortaleza comercializam até mesmo opções de ossadas de primeira e de segunda. A diferença entre os produtos está na quantidade de carne presente no osso e no preço por quilo.
Em um dos estabelecimentos visitados pela reportagem do Diário do Nordeste, o osso de primeira custa R$ 9 o quilo, enquanto o osso de segunda, R$ 5. Em muitos casos, os frigoríficos registraram aumento na demanda, o que acarretou alta no preço dos produtos.
As ossadas sempre estiveram presentes nos açougues do Nordeste sendo usadas em caldos, sopas, feijão, entre outros pratos. No entanto, com a alta no preço dos alimentos, como a carne, que subiu 24,4% em 12 meses em Fortaleza, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), muitas famílias mais vulneráveis passaram a recorrer às ossadas como ítem principal no prato.
“A última vez que comprei carne foi em fevereiro. Tem vez que dá aquela vontade, mas infelizmente não dá (para comprar). Até os ossos que eu gostava pra fazer sopa deu uma subida e não comprei mais”
A situação econômica da família de Maria da Penha Ferreira de Sousa, de 36 anos, por exemplo, não permite o consumo de carne há cerca de oito meses.
Desempregada e com a esposa autônoma sem poder trabalhar durante a pandemia da Covid-19, a família - que ainda é formada por dois filhos de 17 e 16 anos – passou a contar apenas com o auxílio emergencial de R$ 375.
Natural de Uruburetama, interior do Ceará, Penha - como gosta de ser chamada – mudou-se com os filhos para Fortaleza em 2019. A pandemia tirou dela o trabalho informal como cozinheira em uma marmitaria e a impediu de conseguir uma recolocação até o momento.
Ela lembra que antes comprava o quilo da ossada a R$ 3, valor que subiu para R$ 8, tirando o custo-benefício do produto.
Sem dinheiro suficiente para o básico, a família investiu no consumo de ovos e embutidos, como mortadela e salsicha.
Mercado da miséria
Com a disparada dos preços da carne e a redução do poder de compra, estabelecimentos comerciais, principalmente da periferia, têm apostado em produtos de menor qualidade por terem um valor mais acessível.
Vilaneide Bruno, funcionária do Frigorífico Carne do Sol, localizado em Messejana, relata que os produtos que mais saem são quase exclusivamente carnes com ossos, como lombo, peito e mesmo a ossada, que custa R$ 5 o quilo.
Outros itens mais acessíveis são o fígado e preparos para feijoada e panelada, assim como bisteca e costela de porco.
"A ossada aumentou demais a procura, porque você bota dentro do feijão e não precisa mais da carne. A gente dos frigoríficos está se sustentando praticamente só com a carne dianteira, que é a carne de segunda", afirma.
O cenário é reforçado por Gabriel Santos, gerente do Ponto do Carneiro, estabelecimento também na Messejana. Uma das estratégias utilizadas para tentar fidelizar os clientes é colocar um produto em promoção todos os dias.
"Sempre procuram o que está mais em conta, o que está na promoção, que é a carne pra cozido, o porco, o sarrabulho, a ossada. O frango era uma coisa bem acessível e hoje está bem elevado, subindo cada dia mais. Está difícil pro consumidor comprar proteína", ressalta.
Ele revela que os consumidores sempre questionam a variação dos preços semana a semana. Para evitar a redução das vendas, o gerente tenta segurar o aumento o quanto pode.
"Mas às vezes não tem como, porque está subindo muito. O boi não pode subir e a gente manter o mesmo preço. Então, a gente tem que acompanhar essa subida", argumenta.
A procura por miúdos de frango também aumentou significativamente. No mesmo bairro, o Aviário Frango Saboroso, local especializado em cortes de frango, viu as vendas se concentrarem em pés, asas, carcaça e até pescoço de frango.
A funcionária do local, Emanuela Farias, revela que a procura por pés é tão grande que os clientes chegam a encomendar no dia anterior à venda.
"O que está saindo mais são miúdos, porque as pessoas de baixa renda procuram mais essas coisas que é um pouco mais barato. Aqui, custa R$ 4,90 o quilo do miúdo, é o produto mais em conta que a gente tem", afirma.
Ela detalha que, como o frango deu uma subida de preço, os cortes como peito, coxa e sobrecoxa ficaram mais caros, de forma que as pessoas estão preferindo as partes que antes seriam descartadas.
"O frango inteiro também procuram, porque dá pra aproveitar mais. Como a gente trabalha com corte aí se for comprar separado sai um pouco mais caro. O frango inteiro ele já vai levando todos os pedaços por um preço menor", acrescenta.
Apesar da maior procura relatada pelos estabelecimentos, o presidente do Sindicato do Comércio Varejista de Carnes Frescas de Fortaleza (Sindicarnes), Everton Silva, pontua que a participação de ossadas no total das vendas ainda é baixo.
Segundo ele, isso acontece porque a maior parte da carne bovina consumida no Estado vem de outras partes do Brasil, especialmente do Maranhão e do Pará.
"A gente já recebe os cortes. Então, é muito pouco a venda de ossadas. E a gente não tem percebido um aumento significativo na procura, não"
Silva ainda indica que, apesar do período de entressafra da carne bovina, o preço deve se manter estável ou apenas com leve oscilação até o fim do ano, período que tradicionalmente seria de alta nos valores.
Isso deve acontecer porque o mercado já utilizou toda a margem para alta disponível. Novos aumentos significativos em cima do preço já praticado resultaria em perda de vendas.
'Senhor, será que eu tô sendo mal agradecida?'
“É uma tristeza muito ruim viver dentro de casa, de está só esperando pela minha esposa cuidar da gente. Eu ainda complementei esses meses com esse dinheiro (do auxílio), mas nada melhor do que a gente ter o emprego da gente”, desabafa Penha.
De tanta preocupação com o sustento da casa, ela viu o quadro de ansiedade que já a acompanhava se agravar durante a pandemia e se desenvolver para síndrome do pânico.
Com a saúde mental abalada, a desempregada chega a se culpar por falar das dificuldades que enfrenta. "Às vezes eu me acho até mal agradecida. Digo: 'Senhor, será que eu tô sendo mal agradecida?', porque eu não sou de reclamar, não. Não sei nem que milagre estou falando disso com você".
Acostumada com o orçamento curto, ela lembra que, quando criança, via a avó partir uma bolacha ao meio e dividir com ela e o irmão na tentativa de economizar o que pudesse, ensinamento até hoje utilizado na criação dos próprios filhos.
"Por Deus que eles são aquelas pessoas que compreendem, porque tem menino que é meio exigente. Às vezes eu pergunto se vão querer um feijãozinho, aí eles dizem que já comeram um café com pão ou outra coisa e vou deixando pro outro dia", relata.
Ela ainda conta que, durante o lockdown deste ano, período mais difícil para a família, a mãe quis que ela voltasse para o interior, mas preferiu ficar por acreditar em melhores oportunidades para os filhos.
“Querendo ou não, aqui em Fortaleza meus filhos estão crescendo. Eles são novos. Está difícil emprego agora talvez pra mim, devido a minha idade. Mas eu tenho fé que ano que vem minha menina termina os estudos, completa 18 anos e consegue um trabalho bom pra poder ajudar a gente”
Nesse meio tempo, Penha segue na procura de emprego, seja de doméstica, babá, serviços gerais, auxiliar de cozinha, “o que aparecer”, avisa ela.
Redução no consumo de carne
Nesse cenário de crise, as famílias que continuam comprando carne bovina reduziram drasticamente o consumo.
Segundo o sumário da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec) com base em dados do IBGE e do Ministério da Economia, a média de carne vermelha consumida pelo brasileiro foi de 36 kg em 2020, o menor patamar desde 2008 (35 kg).
Em compensação, o consumo de carne de frango alcançou 45,27 kg no ano passado, maior volume desde 2011 (47,38 kg) segundo a Associação Brasileira de Proteína Animal.
O volume de ovos consumidos também disparou em 2020. Foram 251 unidades per capita, um aumento de 9,13% em relação a 2019 (230 unidades) e recorde dos últimos dez anos.
Na casa de Maria Luiza de Souza, 56 anos, a carne de gado está cada vez mais rara. A pandemia reduziu 80% da renda da família, que agora conta apenas com a aposentadoria do esposo.
Ela lembra que antes o casal consumia carne vermelha cerca de duas vezes na semana. "Agora, compro 1,5 kg e faço um jogo de cintura pra durar o mês inteiro. Às vezes passo duas semanas sem consumir", conta.
Mesmo o frango está difícil de caber no orçamento. Ela relata que nos últimos 20 dias viu a bandeja de filezinho, que costumava comprar, passar de R$ 14 para R$ 20.
Com a disparada do preço, Maria agora dá preferência à compra do frango inteiro. Os restos ela aproveita como recheio em omeletes, por exemplo, assim como a sardinha, outra opção mais barata.
"Eu e meu esposo temos problema de saúde, por isso não compramos ossadas. Tem muita gordura e seria trocar por mais doença. Mas se não fosse isso, a gente já estaria partindo pra essa saída também", destaca.
A família da artesã Helaynne Souza também precisou reduzir drasticamente o consumo de carne vermelha durante a pandemia. Os sete familiares, sendo três idosos, precisam sobreviver com renda de três salários mínimos.
Com o aumento exponencial dos alimentos durante a pandemia, a dieta antes rica em proteína teve de dar preferência aos cereais. Agora, a família consome carne de gado apenas duas vezes no mês.
"Frango e ovos viraram estrelas na cozinha por um tempo, mas até mesmo eles estão subindo nos valores. Antes eu comprava ossada pra sopa. Quem tem idoso sabe que vale a pena, mas até isso não está compensando"
A atividade como artesã, especializada em artigos de feltro para bebês, ficou comprometida com a pandemia. Em contrapartida, Helaynne estima que o gasto com alimentação da família aumentou em pelo menos R$ 200.
Situação de pobreza
O emprego informal da esposa de Penha, que recebe R$ 50 por diária, é incerto e não garante a semana inteira de trabalho, rendendo ganho de até R$ 900 por mês, valor que tem de dar conta do aluguel, contas de água e luz e da própria alimentação.
Apesar do baixo rendimento, a família não entra na estatística de pobreza do Governo Federal, que considera em situação de pobreza famílias com renda mensal per capita entre R$ 89,01 e R$ 178.
No Ceará, havia pelo menos 138,5 mil famílias nessa condição em julho e outras 1,1 milhão de famílias cearenses na chamada extrema pobreza, quando o rendimento mensal per capita da residência é de até R$ 89.
Esse é o maior número de pessoas extremamente pobres no Estado da série histórica, iniciada em agosto de 2012. Os dados são do Ministério da Cidadania e consideram apenas as famílias cadastradas no Cadastro Único (CadÚnico).
O coordenador do Laboratório de Estudos da Pobreza (LEP) da Universidade Federal do Ceará (UFC), Vitor Hugo Miro, aponta que, apesar da falta de indicadores oficiais, a pobreza tem aumentado ao longo deste ano.
Ele esclarece que o IBGE, órgão oficial para a mensuração desses indicadores sociais, ainda não divulgou as informações sobre renda este ano.
Ainda assim, ele lembra que o volume de famílias cadastradas no CadÚnico em situação de pobreza e extrema pobreza vem aumentando, cenário que deve ser ainda mais grave, tendo em vista que parcela significativa dos mais vulneráveis não consta em programas sociais do governo.
"Um dos indícios desse aumento da pobreza é justamente a demanda pelo programa Bolsa Família. Essa demanda aumentou muito nos últimos meses e existe inclusive uma lista de espera pelo programa", destaca.