Era 15 de outubro de 1924 quando ocorreu, no extinto Cine Moderno, no Centro de Fortaleza, a primeira exibição da qual se tem registro de um filme creditado a um cearense: “Temporada de futebol maranhense no Ceará”, realizado por Adhemar Bezerra de Albuquerque (1893-1975).
A data ficou registrada no calendário oficial do Estado a partir de 2008 como o Dia do Audiovisual Cearense e, em 2024 — ano no qual a produção cinematográfica do Ceará alcançou feitos inéditos a nível local, nacional e internacional —, marca o simbólico centenário do cinema cearense.
Qual era o contexto do audiovisual no Ceará no início século passado?
“O filme do Albuquerque como marco do cinema pode ser considerado como o seu surgimento profissional como cineasta e foi acolhido com aplausos pela imprensa local”, contextualiza Ary Bezerra Leite, historiador e especialista em cinema e fotografia.
O nome de Adhemar entrou nos registros históricos como o primeiro realizador cearense a produzir um filme, mas Ary explica que existiram outros marcos audiovisuais anteriores a 1924 no Estado, inclusive de produção.
Filmes como “A Procissão dos Passos” (1910) e “Ceará Jornal” (1919) foram produzidos e exibidos em cinemas de Fortaleza durante os anos 1910, mas as autorias das obras não são registradas ou precisas.
“Até o surgimento na década de 1920 do cineasta Adhemar Albuquerque, cearense, nascido em Fortaleza, não há outro conterrâneo no ramo, vazio que é preenchido por ocasional visitante com a missão de filmar nossa terra”, contextualiza Ary.
A produção "Ceará Jornal", por exemplo, exibida no Cine Majestic em 13 de setembro de 1919, conforme pesquisas do historiador, pode ser atribuída ao cineasta mineiro Aristides Junqueira (1879 -1952) — nome que, inclusive, Ary destaca como influência para Adhemar, juntamente do Major Luiz Thomaz Reis (1878-1940).
Aba Film, Severiano Ribeiro e curiosidades do desenvolvimento do cinema no Ceará
“O marco histórico de 15 de outubro de 1924 no audiovisual cearense, com a produção e exibição do filme de Adhemar Bezerra de Albuquerque, ocorreu em um contexto de transformação e expansão da atividade cinematográfica no Ceará e no Brasil”, dialoga Duarte Dias, cineasta e curador de programação de cinema do Cineteatro São Luiz.
“Desde o início do século XX, o cinema já havia encontrado terreno fértil em Fortaleza, que despontava como um dos mercados mais importantes para a exibição de filmes no país”, ressalta Duarte.
Na década de 1920, segue o curador, “vários movimentos surgiram no Brasil na tentativa de descentralizar a produção cinematográfica, praticamente restrita ao Rio de Janeiro e São Paulo”, ocorrendo em cidades como Recife e Cataguases (MG).
Neste contexto “de crescimento e busca pela identidade cinematográfica regional”, como define Duarte, Fortaleza passou a contar com um parque exibidor relevante a partir de iniciativa do empresário Luiz Severiano Ribeiro (1886-1974).
“Foi em meio a esse ambiente vibrante que Adhemar Bezerra de Albuquerque surgiu como um dos pioneiros do cinema cearense”, avança Duarte. O Cine Moderno, onde o filme de estreia do pioneiro foi exibido, inclusive, era de propriedade de Severiano Ribeiro.
“Posteriormente, Adhemar não só dirigiu vários filmes documentando o Ceará e o sertão nordestino, como ‘O Juazeiro de Padre Cícero e Aspectos do Ceará’ e ‘Jangadas dos Verdes Mares’, como também atuou como produtor, tendo sido figura fundamental para que o libanês Benjamin Abrahão pudesse realizar o célebre registro do Bando de Lampião”
Adhemar ficou, ainda, registrado na história como o fundador da Aba Film, famosa empresa fotográfica aberta em 1934 e que teve atuação por décadas em Fortaleza e no Brasil.
Do primeiro filme em 1924 aos recordes de produção em 2024
A celebração do centenário do cinema cearense ocorre em meio a um período inédito para o audiovisual feito no Estado, no qual, por exemplo, foram sete as estreias comerciais de longas neste ano.
“É de um simbolismo profundo, dado que estamos testemunhando uma fase de consolidação da produção cinematográfica cearense, fruto de anos de investimento, criatividade e superação de desafios”, avalia Duarte Dias.
Chegaram às salas do Ceará e de todo o País em 2024 os filmes “Vermelho Monet”, “A Filha do Palhaço”, “Greice”, “Estranho Caminho”, “Mais Pesado é o Céu”, “Motel Destino” e “Quando Eu Me Encontrar”.
De nomes estreantes na direção de longas, como a dupla de cineastas Michelline Helena e Amanda Pontes, a outros com carreira já consolidada, caso de Karim Aïnouz, as produções circularam por dezenas de festivais no Estado, no Brasil e no mundo e acumularam premiações.
Como avalia a secretária da Cultura do Ceará Luisa Cela, em entrevista ao Verso, “isso mostra a capacidade que esse setor tem tanto de dinamizar a economia, com empregos e com serviços, mas também de apresentar o Ceará no Brasil e no mundo”.
De acordo com a gestora, desde o início do ano a pasta tem, em articulação com diferentes parceiros — de equipamentos como o Museu da Imagem e do Som, o Cineteatro São Luiz e a Cinemateca Brasileira ao festival Cine Ceará —, promovido atividades em alusão ao marco do centenário.
Entre elas, podem ser elencadas uma homenagem ao produtor sobralense Luiz Carlos Barreto e mostras de cinema nas salas de cinema públicas do Estado, por exemplo.
A secretária também reitera ações do poder público ocorridas ao longo do ano em prol do audiovisual, como o investimento de R$ 45 milhões no setor advindos dos recursos da Lei Paulo Gustavo e a inauguração em Itapipoca do primeiro Cine+, sala pública de cinema concretizada por parceria entre a Quitanda Soluções Criativa, a Prefeitura, a secretaria estadual e a Enel.
Para Luisa, no entanto, o grande destaque em termos de ação é o início do seminário da Ceará Filmes, projeto de instituição dedicada ao fomento do cinema cearense cujo projeto remonta a 2017.
O evento é um dos passos centrais para a previsão de concretização da iniciativa — que tem previsão de lançamento para 2026, conforme adiantou a secretária ao Verso em agosto.
O seminário deve ser um momento de escuta e partilha das demandas do setor e do êxito de experiências semelhantes no Brasil e na América Latina. Está prevista, também, uma pesquisa sobre diferentes aspectos econômicos do setor.
“Além das programações, das mostras, do investimento em fomento, esse marco da gente, de fato, iniciar os trabalhos de criação da Ceará Filmes é uma forma muito importante de celebrar esse centenário, porque ela vai dar outra dimensão para o processo de investimento e dinamização de um setor que já tem se destacado”
Projeto de criação de streaming cearense
O marco celebrado no Estado, naturalmente, evidencia ainda a relevância de salvaguardar e preservar os legados deste cinema centenário.
Esse gesto tem se efetivado de diferentes formas, da abertura da Sala Seu Vavá no Cineteatro São Luiz — espaço de difusão que também guarda o acervo do histórico Cine Nazaré — à realização no Cinema do Dragão de sessões de filmes cearenses como “O Sertão das Memórias” (1996), "Corisco & Dadá" (1996) e “Eu Não Conhecia Tururu” (2000).
Ao Verso, a secretária Luisa Cela adianta que a pasta estadual, entre diferentes projetos da área, tem atuado via Museu da Imagem e do Som e Cineteatro São Luiz para a criação de uma plataforma de streaming pública que deve reunir acervos históricos do audiovisual cearense.
“O Edital da Secretaria da Cultura que fomenta o audiovisual tem 14 edições. Eu, hoje, não consigo ter um lugar onde todos esses filmes, por exemplo, que foram fomentados com recurso público estejam à disposição da própria Secretaria e da sociedade cearense de uma forma geral”
De acordo com a titular da Secult, “a plataforma é um lugar que a gente quer ter como guarda e como possibilidade de consulta, de pesquisa, de acesso a essa produção”.
A estrutura do Museu da Imagem e do Som, que possui laboratórios, equipamentos e profissionais específicos para processos do tipo, vem sendo central para esses projetos. O equipamento, por exemplo, tem trabalhado na digitalização de longas do cineasta Rosemberg Cariry.
A secretária reconhece essa preservação como um “desafio”, mas destaca as conquistas, como a própria modernização do MIS e a abertura da Pinacoteca — ambos equipamentos que, possuem “estrutura de reserva técnica e de equipe especializada em acervo, pesquisa e memória, para que a gente possa ter condições de cuidar bem desse patrimônio”.
“A gente tem muito ainda o que avançar, mas acho que agora temos uma condição de infraestrutura, equipe e investimentos que vai nos permitir tanto cuidar melhor, como garantir o acesso — porque não adianta nada a gente ter tudo guardadinho e a população não conseguir acessar, seja para pesquisa, seja para difusão”
O olhar ao passado, a celebração dos caminhos até o atual contexto e as ações previstas de continuidade e salvaguarda, enfim, dão o tom do cenário da celebração do centenário da produção do Ceará.
“Esses fatos demonstram o quanto o cinema cearense amadureceu e se expandiu, conquistando espaço não só no cenário nacional, mas também internacionalmente. A comemoração do centenário neste contexto, portanto, destaca o poder da memória e da história, conectando o passado pioneiro do cinema no Ceará com o presente”, reflete Duarte.
“A gente está, nesse marco do centenário, vivendo essa força do cinema cearense ao mesmo tempo que com os pés no chão e com a responsabilidade de como consolidar essa política e fortalecer do ponto de vista institucional e orçamentário o investimento no setor audiovisual”, sustenta Luisa.
Dia do Audiovisual Cearense
A data oficial do Dia do Audiovisual Cearense foi instaurada pela lei n.º 14.166, de autoria do então deputado estadual Artur Bruno (PT), e veio por demanda de profissionais da classe, como explica Duarte Dias ao Verso.
“A ideia de instituir surgiu no início de 2008, quando os membros da Associação Cearense de Cinema e Vídeo buscavam uma forma de celebrar e destacar a importância do audiovisual na história cultural do estado”, contextualiza.
“Naquele momento, nós, realizadores e cineastas, sentíamos a necessidade de demarcar uma data que representasse, tanto do ponto de vista histórico quanto simbólico, o papel fundamental que essa arte exerce na construção da identidade do povo cearense”
Enquanto diretor-presidente da Associação à época, Duarte formatou, em parceria com o cineasta Francis Vale, uma justificativa a favor da criação da data, apresentando-a ao então deputado. O projeto de lei, então, foi assinado pelo então governador Cid Gomes.
A escolha do dia 15 de outubro para celebrar o audiovisual cearense veio a partir de pesquisas históricas do historiador Ary Bezerra Leite, "que identificou esse momento como fundamental para a consolidação da atividade cinematográfica no Ceará".
Linha do tempo
A partir de marcos cinematográficos do cinema cearense listados pelo pesquisador Ary Bezerra Leite e pelo curador Duarte Dias, o Verso construiu uma linha do tempo histórica ligada à construção do audiovisual cearense. Confira!
- 1897 - Primeira exibição cinematográfica registrada em Fortaleza, realizada por Ernesto de Sá Acton e Antônio Ferreira Braga
- 1908 - Primeira sala fixa de cinema do Ceará, o Cinematographo Art-Nouveau, é inaugurada por iniciativa do italiano Vittorio Di Maio
- 1925 - Adhemar Bezerra de Albuquerque realiza "O Juazeiro do Padre Cícero", documentário exibido ainda em cidades como Manaus, Recife e Rio de Janeiro.
- Anos 1930 - Iniciativa de Adhemar Bezerra de Albuquerque, Aba Film torna-se a maior produtora de filmes documentais da região Nordeste, com exibições asseguradas de produções em estados como RJ
- 1937 - Adhemar Albuquerque e Benjamin Abrahão se unem para efetuar as históricas filmagens de Lampião e seu bando, imagens que foram apreendidas pela ditadura de Getúlio Vargas
- 1939 - Criação da Sociedade dos Amadores de Cinema por Otacílio de Azevedo e Augusto Moura, posteriormente Sociedade Cearense de Fotografia e Cinema
- 1948 - Criação do Clube de Cinema de Fortaleza por Darcy Costa e Antonio Girão Barroso
- Anos 1950 - Fotógrafo Paulo Sales produz o considerado “segundo ciclo de produção de documentários sonorizados”
- 1953 - 1º Festival Cearense de Cinema, iniciativa do Clube de Cinema de Fortaleza e da Associação Brasileira de Escritores (Seção do Ceará), é realizado
- 1958 - Cine São Luiz é inaugurado
- 1971 - Casa Amarela da Universidade Federal do Ceará é criada por Eusélio Oliveira
- Anos 1980 - Início da realização de mostras e festivais que refletiam a produção cearense em cinema e vídeo
- 1991 - Criação do Festival Vídeo Mostra Fortaleza por Eusélio Oliveira e Francis Vale, evento que daria origem ao Festival Cine Ceará
- 1999 - Inauguração do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, com cursos de formação audiovisual
- 2001 - Criação do Edital Ceará de Cinema e Vídeo
- 2010 - Criação do curso de graduação em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará
- 2021 - Estabelecimento da Lei n.º 17.857/2021, que criou o Programa Ceará Filmes