Das indicações de quatro artistas cearenses a diferentes categorias do Prêmio Bibi Ferreira 2024 à escalação de nomes do Estado em espetáculos produzidos no chamado “eixo Rio-São Paulo”, passando ainda pela circulação de peças cearenses nesses estados, atrizes e atores do Ceará têm conquistado palcos da região Sudeste.
A partir desse movimento, o Verso reflete sobre a abertura de espaços que artistas cearenses de teatro têm capitaneado na região que ainda concentra capital simbólico e financeiro também na cultura. Entre necessidades, desejos e ousadias, os profissionais ouvidos pela reportagem compartilham desafios, mas, acima de tudo, celebram a potência da arte e de artistas cearenses.
A lista de indicados ao Prêmio Bibi Ferreira deste ano foi divulgada na última quinta-feira (22) e destaca cearenses como Verónica Valenttino, Davi Sá, Marina Braga e Larissa Carneiro.
Davi e Marina foram indicados na categoria de Revelação em Musicais, categoria vencida por Verónica em 2022. Neste ano, ela foi indicada como “Melhor Atriz em Musicais” pelo trabalho em "Priscilla, a Rainha do Deserto - O Musical".
Já Larissa Carneiro foi indicada na categoria "Melhor Atriz Coadjuvante em Musicais" por "Um Grande Encontro - O Musical". Ao Verso, a atriz — radicada no Sudeste há 12 anos — rememora que começou a trajetória na área aos 13 anos, no Balé Folclórico Arte Popular de Fortaleza.
Inícios em Fortaleza
No grupo, Larissa teve formação em dança e começou a circular por diferentes países. Na Capital cearense, ela ainda estudou canto popular no Conservatório de Música Alberto Nepomuceno e, no antigo Centro Federal de Educação Profissional e Tecnológica do Ceará (atual IFCE), se formou em Artes Cênicas.
“Era o único curso que tinha, isso foi em 2004. Acabei abrangendo a dança, o teatro e o canto porque já buscava me profissionalizar dentro dessa área”, partilha. Foi somente na formação superior que ela pendeu ao teatro musical, a partir da atuação de entusiastas do gênero no curso.
“Tinha o Glauver Souza (diretor teatral) e um grupo de pessoas que já se interessavam muito. Eu gostava, mas não sabia de muitas coisas desse mercado. Ele começou a fazer pequenos shows e montagens com números musicais, fui participando. Nessa junção, fui entendendo o que era teatro musical e as possibilidades no segmento começaram”
O antigo Cefet foi também o ponto de partida de Walmick de Holanda com a atuação, em especial a partir da experiência do Coletivo Cambada, formado em 2006 por estudantes do curso. Há 12 anos fora do Ceará, ele compõe atualmente o elenco da montagem de “Shakespeare Apaixonado”, em cartaz em São Paulo.
“A gente fez alguns espetáculos, como ‘Controle’ e ‘Otelo’. Pouco depois, fiz um curso na Vila das Artes com professores de fora e um deles citou uma pós-graduação em direção, em São Paulo. Era um movimento que me interessava”, lembra. Após concluir a pós, entrou na Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo e se estabeleceu na região.
Do mercado mais amplo ao sotaque "padrão"
Na avaliação de Walmick, a amplitude de possibilidades profissionais ajudou na permanência na nova cidade. “Aqui acaba tendo um mercado um pouco mais amplo e tem uma maior possibilidade vital da profissão, no sentido de conseguir fazer dublagem, locução, campanhas publicitárias, audiovisual, tem outros ramos da profissão”, aponta.
Na experiência individual dele, isso foi um diferencial porque, em Fortaleza, ele precisava dividir o tempo entre o teatro e um segundo emprego, como publicitário. “Eu tinha que ter dois focos de direção profissional e isso me incomodava”, explica.
Larissa ecoa a sensação do ator ao falar dos motivos que a levaram a buscar oportunidades no Sudeste. “A cena em Fortaleza estava bem efervescente, eu estava animada e, ao mesmo tempo, queria mais, participar de produções maiores, alavancar minha carreira”, lembra.
“Não que aí (Ceará) a gente não possa, mas muito da cultura no País acaba ficando concentrado no Sudeste e, falando em musical, principalmente em São Paulo”, aponta.
Tanto Larissa quanto Walmick, no entanto, ressaltam que a ida para a região Sudeste foi e é marcada por desafios. “Não é o cenário dos sonhos, não caio no imaginário do ‘minha vida vai se transformar’. Como se ser ator aqui fosse quase um contrato Globo”, contrapõe ele.
“A gente também tem que fazer outras coisas, mas aqui as possibilidades acabam tendo um campo semântico, por assim dizer, mais conectado”, segue, citando que tem trabalhado também como modelo e locutor. “São possibilidades de renda que não me tiram, necessariamente, do meu fazer teatral”, resume.
Larissa ressalta, em especial, a xenofobia como desafio relevante na trajetória. “Existe muito preconceito com nosso sotaque. Somos, muitas vezes, bem recebidos em situações que precisam de nordestinos, mas em outras nem tanto. Sendo um trabalho que tenha essa necessidade, vão te exigir que padronize o sotaque”, exemplifica.
Formação de artistas e de público
Além de atores, o Verso foi ouvir o diretor e produtor André Gress, reconhecido como um dos nomes a ter fortalecido o mercado de musicais no Ceará a partir de iniciativas como a Broadway Brasil — programação de formação gratuita iniciado em 2013 —, a The Biz — escola de teatro musical — e “Avenida Q” — pioneiro espetáculo musical de grande porte fora do eixo, realizado em 2015 em Fortaleza.
Envolvido com teatro desde a infância, André se formou fora do Brasil na área de musicais e, ao retornar a Fortaleza, deu vazão a um grupo de âmbito universitário dedicado ao gênero, na Universidade de Fortaleza.
“Não podemos dizer que existe um grande cenário para teatro musical aqui. Existe um cenário, mas ele ainda não é profissional, infelizmente. No entanto, há pessoas dispostas a produzir e experimentar esse gênero”, avalia.
“Existem grupos que, conseguem se capacitar e trazer um pouco mais dessa experimentação, mas isso ainda ocorre em estruturas de pequeno, talvez até médio porte”, segue.
Em diálogo, Larissa lembra que, ao chegar em São Paulo, viu uma infinidade de oportunidades em formações diversas. “Competir com essas pessoas acaba sendo um grande desafio, não por questão de talento, mas sim de investimentos. Na época que eu morava em Fortaleza, também por causa da minha classe social, venho de uma família humilde, meus pais não tinham condição”, partilha a atriz.
Na avaliação de André, o cenário de formações se desenvolveu na Capital cearense ao longo dos últimos anos. Ele destaca que é importante que pessoas interessadas em trabalhar com teatro musical “tenham onde começar” e, reconhece o diretor, Fortaleza já é esse espaço.
“Já temos professores de canto bem qualificados, a dança é bastante desenvolvida, o teatro também, e hoje existem escolas que conseguem proporcionar essa experimentação do gênero”, sustenta.
“Ao comparar 2015, quando dirigi 'Avenida Q', com hoje, 2024, quase 10 anos depois, é que naquela época ainda precisávamos buscar atores fora de Fortaleza para o elenco. Em 2015, acredito que cerca de apenas 40% eram de Fortaleza. Hoje, fico feliz em pensar que já conseguiríamos montar um espetáculo assim com pessoas que se capacitaram e construíram uma história dentro desse cenário”
Apesar dessa mudança positiva, André não vê a Capital como um centro em termos de mercado profissional. “Talvez até existam pessoas que querem fazer acontecer, mas não há uma demanda capaz de abraçar o gênero, porque o teatro musical é muito caro. Exige muito investimento, tanto para a produção quanto para a infraestrutura necessária”, pondera.
Reconhecimentos aos artistas e à cena
O diretor e produtor teatral André Gress ressalta a “grande alegria” de ver reconhecidos no Prêmio Bibi Ferreira nomes que passaram por produções e iniciativas promovidos por ele em Fortaleza.
“Tanto a Marina (Braga, indicada como Revelação por ‘Um Grande Encontro - O Musical’) quanto o Davi (Sá, indicado como Revelação por ‘Bob Esponja - O Musical’) passaram pelo Broadway Brasil, participaram de produções menores na cidade e também integraram a The Biz”, destaca.
“Para mim, é uma grande alegria ver essas pessoas ganharem o mundo e serem reconhecidas pelo talento que têm. Não há nada melhor do que celebrar isso. É importante dizer que Fortaleza ainda conta com muitos entusiastas, pessoas que estudam e buscam desenvolver esse gênero na cidade”
Para Larissa, além da “vontade de crescimento e de profissionalização”, outra motivação de adentrar no mercado do Sudeste era “diferenciá-lo”. “Mostrar que atores nordestinos são altamente competentes, talentosos, que a gente faz a diferença”, destaca.
Na visão de Walmick, a abertura do “eixo” para artistas do Ceará e outros estados é fruto de uma “recontextualização” social e política.
“Isso é por uma luta de outros cenários, políticos, que reverberam nisso — porque está intrinsecamente relacionado à discussão da inclusão de pessoas não-brancas, LGBTQIAPN+, de minorias discursivas”, elabora.
Tal inclusão, ele metaforiza, “melhora o olhar” da indústria. “Inevitavelmente, acabam conhecendo artistas que são bons e que, antes, não estavam no campo de visão”, resume.
“Artistas que são colegas que saíram também do Cefet — a Larissa, a Verónica Valentino, o próprio Silvero Pereira — são pessoas que estão tendo bastante reconhecimento e prefiro acreditar que é porque o talento realmente é visível, notório e inquestionável”, acredita Walmick.
Larissa ecoa: “A gente quer novas histórias. Para ter novas histórias, precisa de novas pessoas. Essa abertura vem acontecendo inclusive por uma questão de representatividade. Não está mil maravilhas, mas vem acontecendo para trazer novas características e jeitos de se fazer”.
Tanto ela quanto ele confiam na permanência dessas oportunidades. “É quase uma engrenagem, um movimento desse acaba gerando outros movimentos e isso acaba sendo visto”, acredita Walmick. “Tenho percebido essa abertura de uma forma gradual, ainda é difícil e tem muitas barreiras, mas vem acontecendo e espero que aconteça cada vez mais”, antevê Larissa.
Circulações
Além das indicações de artistas cearenses ao Prêmio Bibi Ferreira e da escalação de nomes como Walmick e Vinícius Caffé em espetáculos do Rio-SP, trabalhos cearenses ou com equipes criativas do Estado — como as peças “Egoísta”, com Ana Marlene, “Pequeno Monstro”, com Silvero Pereira, e “Expurgo”, com Ari Areia — também têm feito circulação pela região.
“Egoísta”, por exemplo, com produção da cearense Peixe-Mulher, fez temporada no Rio de Janeiro a partir de um edital do Sesc. Já “Pequeno Monstro”, protagonizada pelo cearense Silvero Pereira e com outros nomes do Estado na ficha técnica, foi produzida pela carioca Quintal Produções e estreou na capital fluminense.
Ainda no sentido de estimular a circulação, há diferentes iniciativas no Ceará que possibilitam esse tipo de intercâmbio artístico. Uma delas, por exemplo, é o programa Territórios de Criação - Edital de Concessão de Mobilidade Formativa, da Secretaria da Cultura do Governo do Ceará.
A partir do investimento de R$ 1,2 milhão, 34 artistas e agentes culturais do Estado irão viajar para dez estados brasileiros e dez países a fim de realizar atividades de formação. A oportunidade destinou bolsas para profissionais de áreas técnicas e diferentes linguagens.
Outra oportunidade, essa ainda aberta, é o edital Maré Cearense, do Instituto Dragão do Mar (IDM), que segue com inscrições abertas até a próxima segunda-feira (2). A iniciativa prevê a circulação de produções cearenses de música, teatro e dança em São Paulo, incluindo apoio financeiro e cachê.
As apresentações das obras selecionadas irão acontecer em novembro na capital paulista. O edital é fruto de aprovação do IDM na Lei Rouanet, com patrocínio master da Nubank.