Idosa resgatada de trabalho análogo à escravidão em SP quer realizar sonho de ter 'casinha'
Durante quase 30 anos, a vítima trabalhou para um casal — uma médica e um empresário — sem receber salário e sem direito a férias ou descanso semanal
A idosa de 82 anos, resgatada após 27 anos de trabalho análogo à escravidão em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, nutre o sonho de "ter uma casinha". Resgatada em outubro, ela passou a morar com um irmão em Jardinópolis, cidade próxima, e é acompanhada por assistentes sociais, de acordo a prefeitura de Ribeirão.
Conforme Jamile Virginio, auditora fiscal do Ministério do Trabalho e Previdência (MTP), a idosa tem se mostrado feliz com a nova vida.
"Estive com ela várias vezes e tudo o que ela quer é ter sua própria casinha, o que sempre foi seu sonho. Mesmo estando bem com o irmão e os sobrinhos, que são bem presentes, ela quer recuperar o que nunca teve: sua vida própria. Ela fala em ter a casa, receber amigos e fazer festas", relatou.
Durante quase 30 anos ela trabalhou para um casal — uma médica e um empresário — sem receber salário e sem direito a férias ou descanso semanal, segundo denúncia do Ministério Público do Trabalho (MPT). Só de verbas da rescisão trabalhista, ela é credora de mais de R$ 800 mil.
A auditora conta que a idosa, negra, analfabeta e de origem muito humilde, sempre dependeu dos patrões para tudo e pouco saía de casa.
Quando a equipe chegou, ela ficou muito assustada, demorou um pouco para entender a sua situação. No momento inicial, houve uma negação, até uma defesa da patroa. Agora, na casa do irmão, ela já está consciente de tudo o que passou, embora ainda esteja assustada com o assédio da imprensa
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Pagamentos e indenizações
Conforme o procurador do MPT, Henrique Lima Correia, diante do valor apurado de dívidas trabalhistas, tudo o que o casal ofereceu foi um pagamento de R$ 5 mil. "Não houve uma tentativa de corrigir o erro e o que entendemos como crime, o trabalho análogo à escravidão, que será tratado em outro processo, pela Polícia Federal", explicou.
O MPT entrou com ações na vara judicial de Ribeirão Preto para obter, além do pagamento da rescisão trabalhista, indenização por danos morais individuais, danos morais coletivos e dano existencial — quando se retira a possibilidade de a pessoa ter vida plena —.
A médica deve responder também por reter o cartão do benefício social que a idosa recebia do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), no valor de R$ 1,2 mil mensais. Esse dinheiro não era entregue integralmente à titular do benefício.
O procurador contou que, em 16 anos de atuação no MPT, não havia cuidado de um caso tão traumático e triste: "Peguei vários casos de trabalho escravo na roça, na construção civil, mas nada comparado a esse, em que a vida da pessoa é anulada para que ela sirva aos propósitos dos patrões. A reparação financeira é o mínimo que se deve àquela senhora."
Casal sustenta inocência
O casal que empregava a idosa, a médica pediatra Maria de Fátima Nogueira Paixão e o empresário Hamilton Bernardo, tiveram o muro de sua casa, no bairro Ribeirânia, pichado com a palavra "escravista" nesta quinta-feira (8)
A médica não falou com a reportagem e alegou no processo que pagava um salário mínimo por mês à mulher. Disse ainda que ela era tratada como alguém da família, recebendo acomodação, alimentação e cuidados médicos.
Para a reportagem do Estadão, Bernardo disse que reside com a médica há três anos e que a idosa era considerada como se fosse um membro da família, não havendo nada que pudesse configurar trabalho análogo à escravidão.
"Houve precipitação da promotoria (do Trabalho), pois não tem nada de trabalho escravo. Os parentes vinham buscar para levá-la à casa deles. Quando nós viajávamos, ela ficava em casa, com total liberdade para dispor de tudo", defendeu o empresário.
Segundo ele, os advogados que farão a defesa do casal já pediram acesso aos autos dos processos e vão se pronunciar oportunamente.
Entenda o caso
Aos 55 anos, uma mulher começou a trabalhar para um casal, que tem renda superior a R$ 12 mil, com a promessa de que o dinheiro do salário estava sendo guardado para pagar uma "casinha" para ela. Essa crença foi compartilhada não apenas com a equipe de fiscalização, mas também com a vizinhança.
No entanto, a vítima nunca recebeu o imóvel. Ao invés disso, passou a viver em um quarto sem janelas, do lado de fora da casa dos patrões. De acordo com o g1, o espaço era decorado com uma cama, um armário, um cabideiro e um ventilador.
A residência oficial de Maria de Fátima e Hamilton tinha outros três quartos desocupados. Em depoimento, a médica justificou a separação pelo fato da vítima ser fumante.
Durante as quase três décadas que trabalhou, ajudou na criação de três filhos do casal, todos formados em Medicina. Ainda relatou trabalhar todos os dias e fazer tudo em casa.
Raramente, recebia um valor de R$ 20 ou R$ 50 para visitar a família em Jardinópolis (SP).