Nordeste. Uma palavra, incontáveis significados. No dicionário tem por definição ser o “ponto do horizonte situado entre o norte e o leste”, na vida real, o nordeste brasileiro transborda a descrição geométrica. Região de ritmos e cultura. Povo criativo e resiliente por natureza. Local de sol e de luta. Local em que o suor vira arte. E essa arte transforma o Brasil.
Para celebrar a pluralidade dessa região, o Nordestino ganhou um dia inteiro para chamar de seu, 8 de outubro. A data foi escolhida durante as homenagens ao centenário do poeta popular Patativa do Assaré, um dos mais reconhecidos nordestinos Brasil afora. No entanto, tantos outros compõem essa rica história.
De tantos Zés, Marias, Joãos e Silvas, que ajudaram a desenvolver econômica e culturalmente este país, alguns nomes se destacam, como o artesão e mestre do couro, Espedito Seleiro, que por décadas ajuda a (e)levar o nome do Nordeste para todas as regiões do Brasil e até ao estrangeiro.
Foi numa sexta-feira, como a de hoje, que nasceu Espedito Velozo de Carvalho, no ano de 1939, em 29 de outubro, mês agora dedicado ao Nordestino. Era o destino surrando que a história daquele menino nascido em Arneiroz, mas que fez morada – e carreira – em Nova Olinda, no Cariri cearense, se confundiria com o Nordeste.
Do couro, Espedito, o Seleiro, fez arte. Das mãos talentosas do artesão a endumentalha dos vaqueiros ganhou cores, formas e vida. Assim como o nordestino, que ressignificou e transformou a imagem preconceituosa e míope que se tinha sob o Nordeste, Espedido, da pequena cidade Nova Olinda, deu um grito silencioso que pôde ser ouvido pelos quatro cantos do Brasil.
“Eu nunca pensei em ser famoso ou ser conhecido, mas queria continuar a tradição da minha família e queria ajudar a melhorar a vida dos meus, sabia que só através de muito trabalho eu conseguiria e foi isso que fiz. Da minha cidadezinha do interior eu trabalhei duro e acabei mostrando que o Nordeste tem muito valor”, considera.
No início de sua trajetória, quando da exportação das primeiras peças autorais, Espedido revela que as pessoas tinham um “olhar diferente para nós nordestinos”. Essa visão histórica passou a ser desconstruída a medida em que seu trabalho foi ganhando relevância nacional.
“Nunca tinha parado para pensar sobre isso [contribuição para quebra de paradigmas e preconceitos], mas hoje vejo que sim, ajudei um pouco a mudar esse pensamento. Quando vou para outros estados, as pessoas me recebem bem e assim passam a receber todos os nordestinos, é um avanço importante”, completa o artesão.
Seu talento foi passaporte para a Marquês de Sapucaí, São Paulo Fashion Week e à Embaixada do Brasil em Londres. Um homem com cara de Nordeste: lutador, criativo e talentoso, assim como tantos outros homens e mulheres que pulsam essa região.
A imersão no artesanato lhe rendeu o título de Mestre da Cultura, com reconhecimento pela Secretaria da Cultura (Secult) do Ceará e Ministério da Cultura, além de acumular títulos de notório saber em Cultura Popular pelas Universidades Federal e Estadual do Ceará.
Fico feliz por ter conseguido muitos feitos e me tornar importante através da minha arte. Mas muitos outros também trabalham todos os dias com o objetivo de desenvolver nosso país e carimbar o nome do nordeste”
Forte e trabalhador
Nesse dia em que se celebra o nordestino, Seleiro aponta como ‘principais características do nosso povo’ o que ele classifica como “trabalho incansável”.
“Seja lá em qual profissão for, o nordestino é povo trabalhador. Trabalha e trabalha muito, com dedicação e sempre um sorriso no rosto. Tenho muito orgulho de ser nordestino”.
Mesmo dotado de tanta importância e reconhecimento nacional, Seleiro preserva um jeito simples, leve e humilde de viver: “Sou formado só no couro”, brinca o ‘homem da arte’, que pouco frequentou a escola tradicional mas que revolucionou o artesanato do couro no Brasil.
Essa revolução, feito reconhecido pelo próprio, ainda não parou. Como presente ao Dia do Nordestino, Espedito Seleiro revelou em primeira mão que está trabalhando “na realização de mais um sonho”.
“Conquistei muita coisa, graças a Deus. Realizei vários sonhos, mas não parei de sonhar. Tem outro que, mesmo com a minha idade pretendo alcançar”. Questionado sobre qual sonho seria esse, a resposta veio com o bom humor que lhe é peculiar e repleta de mistério.
“É segredo,” diz em meio a gargalhadas. “Primeiro vou trabalhar quietinho, quando realizar, todos vocês saberão”, finaliza, deixando o enigma no ar.
Rainha dos Vaqueiros
Do couro às vaquejadas. Mestre Dina Martins é outra que carrega no peito os traços nordestinos e representa tão bem essa região. Vaqueira e aboiadora, Dina, que por anos carregou nas vestes peças de couro, como o gibão, fundou há quase 40 anos a Associação dos Vaqueiros, Aboiadores e Pequenos Criadores dos Sertões de Canindé.
Seus feitos são plurais, tal qual a força que ela teve para “prosperar na vida”. Já foi considerada a segunda mulher mais influente na cultura popular brasileira e é conhecida como a “Rainha dos Vaqueiros”, título concedido em 1976 por sua dedicação ao sertanejo.
Dina, assim como Espedito Seleiro, deu visibilidade ao nordeste em outros países, sendo inclusive personagem de documentário para uma TV Australiana. “Não foi fácil”, destaca a vaqueira.
“Sofri muito preconceito. Por ser mulher, nordestina e por andar em um meio onde só haviam homens. Tive que ralar bastante e não baixei a cabeça. Os homens tentavam me boicotar, deixam as selas soltas, jogavam areia em minha comida, era terrível. Mas eu nunca baixei a cabeça, sabia minha missão e fui atrás”, relata.
Ela conseguiu. Em 1970 criou a hoje famosa Missa do Vaqueiro e seis anos mais tarde, cantou com o Rei do Baião, Luiz Gonzaga. “Foi a realização de um sonho e a certeza de que estava no caminho certo”.
Dina é hoje uma das maiores incentivadoras dos costumes e tradições do vaqueiro no Nordeste, seja através da Associação ou de sua luta individual.
Nordestino é isso. É um povo que não esmurece, que não cansa e não desiste. Acho que essa é nossa principal marca, nosso principal legado para o Brasil: trabalhar e perseverar pelos objetivos”
Legado
Assim como Seleiro, Dina nutre um “último desejo”, o de construir uma Casa do Vaqueiro na cidade onde vive, Canindé, no interior cearense. “Eu sou defendedora da vaquejada e através dessa luta ajudei a desmitificar a visão que se tinha do nordestino e principalmente da mulher nordestina. Mas quero ir além, quero deixar um legado, um local que as pessoas olhem e sinta resistência, apoio e, assim, se encorajam a seguir lutando”.
A realização desse sonho, segundo ela, “já teria sido concretizado se as autoridades dessem mais importância à vaquejada. O terreno já tenho e vou seguir correndo atrás do restante”, obstina-se.
“Olho para traz e sinto orgulho”
Nesse Dia do Nordestino, a Mestre da Cultura diz ter motivos suficientes para comemorar e orgulhar-se.
“É uma data importante, ainda mais para quem luta diariamente. Antes as pessoas viam a gente com preconceito, hoje já nem tanto. Tenho duas filhas – e um homem – e elas hoje não sofrem o preconceito que sofri. Me sinto feliz por isso, sei que contribui para um nordeste melhor para ela e tantas outras mulheres”.
Que essa data seja bastante celebrada e que nosso povo siga sendo batalhador, inteligente e dedicado"
Cultura nordestina e suas contribuições
Em que pese a importância do artesanato e da vaqueja, a ‘nordestinidade’ vai além. Nordeste, uma região formada por vários nordestes, tem na cultura um de seus grandes pilares.
A pós-doutora em Avaliação de Políticas Públicas e Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e professora da Universidade de Fortaleza, Danielle Maia Cruz, destaca que a cultura tem aspecto fundamental quando repensamos o processo de ‘invenção do nordeste’.
Dentre as várias manifestações existentes no Nordeste, a especialista cita o Maracatu como um dos mais importantes, pois “ele se coloca em posição de resistência”, além de difundir saberes sobre a negação da presença do negro e de religiões de matriz africana e afro-brasileira.
Desta forma, explica a doutora, o Maracatu se contrapõe à ideologia do embranquecimento presente por várias décadas no Nordeste e que deu origem a “um projeto de teorias raciais que é fortemente responsável pelo racismo estrutural que ainda circunda o nosso país de forma tão constante”.
A cultura e suas manifestações se colocam como movimento de resistência”
Danielle Cruz aponta ainda os Maracatus revelam várias possibilidades de pensar o Brasil, “revelam aspectos de poder que são muito fortes no Nordeste, como as questões de gênero”.
“Como a dificuldade de as mulheres ainda se inserir em espaços importante e isso é uma reminiscência muito forte da cultura colonial fortemente presente no Nordeste. E, ao mesmo tempo que ele [Maracatu], revela todos esses movimentos de exclusão, trazem também outros aspectos sobre o que é ser nordestino e o pensar nordestino”.
Construção e desconstrução da imagem do Nordestino
O docente universitário e doutor em Antropologia Social, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Jorge Luan Teixeira explica a importância da carga histórica e da conjuntura política, social e econômica do povo do Nordeste a nível nacional.
Contudo, em paralelo a esse protagonismo, Teixeira adverte que o povo nordestino está em constante luta pelo processo de ressignificação da imagem míope que fora criada. Ele explica as razões desse olhar preconceito, fala sobre os avanços e gargalos ainda existentes e pontua a importância do povo nordestino para o desenvolvimento do Brasil. Veja a entrevista abaixo.
A imagem designada ao Nordeste por muitos anos foi de uma região atrasada e subdesenvolvida. Por qual motivo?
São várias as razões, mas eu destacaria, de um lado, o deslocamento do centro de poder político e econômico do país para o Sul (atual “Sudeste”) durante o Brasil Colônia e Império, assim como a maior industrialização dessa última região.
De outro, a brutal desigualdade social no Nordeste, a concentração de terras, assim como a incapacidade governamental de lidar e conviver com as secas nos “sertões” me parecem ter agravado a imagem. Associado a isso, ao longo do século XX, os veículos de comunicação de massa, sobretudo o rádio e a televisão, contribuíram para estabelecer essa visão.
Hoje essa visão distorcida permanece inalterada ou tivemos um avanço nessa questão?
Avançamos, embora volta e meia surjam atitudes racistas que muitas vezes estão associadas ao perfil político da região (basta ver o preconceito destilado nas redes sociais por ocasião das duas últimas eleições presidenciais, o que, infelizmente, deve retornar em 2022).
Destaco o papel, por exemplo, de influenciadores digitais (no momento, lembro a pernambucana Ademara Barros) na “troça” com tais preconceitos, o que é bastante útil para demonstrar o seu absurdo.
A cultura, tão forte em nossa região, contribui para "desrotular" a imagem que por anos foi construída sob essa região?
O que é “nordestino”, culturalmente falando? O disco “Fortaleza”, do grupo Cidadão Instigado, ou a música da Banda Cabaçal dos Irmãos Aniceto? “O auto da compadecida”, de Guel Arraes, ou o cinema de Karim Aïnouz? Os poemas de João Cabral de Melo Neto ou aqueles de Jarid Arraes?
Parece-me que todas são produções de altíssima qualidade e todas representam o Nordeste. É atribuída ao escrito russo Leon Tolstói a máxima de que para ser universal é preciso cantar primeiro a própria aldeia. Pois bem: há muitas “aldeias” diferentes no Nordeste brasileiro sobre as quais cantar e formas distintas de cantá-las.
Podemos seguir cantando sobre elas e com isso tocar o universal, mas também podemos, e já o fazemos, cantar o universal à nossa maneira. Considerada a cultura dessa forma plural, minha resposta é sim.
O papel desempenhado pelo Nordeste é fundamental para a produção de riqueza, na transferência de matéria prima e recursos naturais, para o Brasil, sobretudo na exportação e reprodução de força de trabalho. Nacionalmente já se tem esse entendimento da importância de nossa região?
Certamente, mas essa relevância econômica vem desde o Brasil Colônia, com períodos de maior ou menor intensidade, e esse fato foi destacado por inúmeros “intérpretes do Brasil”. Como um exemplo, penso que assistiremos nas próximas décadas, dado a atenção global sobre o tema, o Nordeste brasileiro virar um polo da produção de energias renováveis, como a solar e a eólica. Chamo atenção, contudo, para os eventuais efeitos sociais e territoriais perversos sobre populações locais que a instalação de tais parques pode causar.
O representa uma data como o Dia do Nordestino? É um dia para celebrar a resiliência e resistência desse povo?
É um dia para celebrar a existência de um povo em suas muitas diferenças. A superação dos preconceitos sobre o Nordeste passa em alguma medida pela afirmação e divulgação da sua diversidade social, cultural e mesmo ecológica. Ao mostrar que existimos e como existimos, estamos fazendo mais do que resistir.