Que a política brasileira é dominada por homens, não é novidade. Que, por isso, é difícil debater questões de gênero, especialmente de combate à violência contra a mulher, também não. Mas quando passou a ser comum parlamentares agredirem mulheres deliberadamente?
Em menos de dois anos, o deputado Arthur do Val (União Brasil), da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), agrediu verbalmente refugiadas ucranianas e as chamou de “fáceis” por serem “pobres”. Na mesma casa legislativa, o deputado Fernando Cury (União) agrediu sexualmente a deputada Isa Penna (Psol), apalpando seu seio em meio a uma sessão plenária. Em Fortaleza, o vereador Ronivaldo Maia (PT) agrediu fisicamente uma ex-companheira, ao arrastá-la na rua, presa ao limpador do carro.
A violência contra a mulher, física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral, tem contornos ainda mais graves quando cometida por homens públicos, que deveriam usar seus cargos para proteger a sociedade e não para violentar ainda mais grupos historicamente mais vulneráveis.
De diferentes formas, esses casos provocam a opinião pública, pressionam os parlamentos à ação concreta contra a violência e transformam o debate político sobre gênero.
“Nos últimos dois anos, a gente tem falado mais sobre violência política contra as mulheres. E isso coloca, também, como um tema central, os parlamentares como autores de violência”, observa a cientista política Paula Vieira, pesquisadora do Laboratório de Estudos Sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem) da Universidade Federal do Ceará (UFC).
“O debate mudou", reforça a vereadora Cláudia Gomes (PSDB), de Fortaleza. "À medida que os anos passaram, esse assunto ganhou mais importância e força dentro do parlamento, até por causa do aumento da representatividade feminina nestes locais”.
Nesta reportagem, o Diário do Nordeste apresenta um panorama desses e de outros casos que tiveram visibilidade do ano passado até hoje envolvendo políticos agressores de mulheres e explica como a violência política de gênero, uma das novas formas de violência contra a mulher, tem ganhado cada vez mais holofotes nos parlamentos.
Ronivaldo e a pressão na Câmara
Recentemente, tiveram visibilidade nacional e local diversas atitudes violentas de parlamentares homens contra mulheres — quer elas ocupassem ou não espaços de poder. E essas atitudes repercutiram internamente nas casas legislativas, sobretudo nas falas de representantes mulheres.
Um desses casos envolveu o vereador Ronivaldo Maia (PT), em Fortaleza. Investigado por tentativa de feminicídio, ele, que chegou a ficar preso preventivamente por dois meses, foi solto por habeas corpus em fevereiro e foi absolvido no Conselho de Ética da Câmara Municipal em processo de perda de mandato por quebra de decoro.
O pedido de análise da cassação do parlamentar foi solicitado em março pela bancada do Psol na Casa. O processo foi arquivado em abril — o único voto contrário ao arquivamento foi dado por uma mulher, a vereadora Cláudia Gomes, única representante feminina do colegiado. Ela sustenta que, consciente de seu papel no combate à violência contra a mulher e por políticas públicas de proteção, não poderia ter votado diferente.
A atitude da Câmara foi também criticada pela vereadora Adriana Gerônimo, do mandato coletivo Nossa Cara (Psol), que protocolou o pedido, e pelo coletivo de mulheres do PT no Ceará, que, em nota divulgada nesta terça-feira (3), censurou a demora do partido em tomar uma atitude diante do caso e exigiu a expulsão imediata do político dos quadros da legenda. "Muito constrange as mulheres do PT que o vereador reassuma o exercício do seu mandato impunemente", escreveram.
Perdas de mandato
Diferentemente da Câmara Municipal de Fortaleza, a Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) chegou a aprovar a análise da cassação do deputado Arthur do Val (União Brasil) por quebra de decoro após o vazamento de mensagens de áudio machistas do parlamentar sobre refugiadas ucranianas. Contudo, para não perder direitos políticos, o deputado se antecipou ao procedimento parlamentar interno e decidiu, por contra própria, renunciar.
Na Alesp, recentemente, também foram protocoladas duas representações pedindo a cassação do mandato do deputado Delegado Olim (PP) após falas machistas sobre a deputada Isa Penna (Psol). Isso, porque, no dia 20 de abril, Olim falou, em entrevista ao podcast Inteligência Ltda, que Isa se reelegeria graças à importunação sexual sofrida em plenário em dezembro de 2020, quando câmeras da Alesp gravaram o momento em que o deputado Fernando Cury (União Brasil) se aproximou por trás dela e apalpou seu seio. “A Isa Penna, que sorte a dela, vai se eleger por causa disso. Sim, ela só fala nisso”, disse Olim.
"Camaradagem"
Homens, historicamente, se protegem. Mesmo e especialmente em casos de violência de gênero. Porém, nos parlamentos, onde tudo é formalmente registrado, essa rede de proteção masculina tende a enfraquecer com a participação política de mais mulheres e com o engajamento da sociedade, que deve cobrar o decoro de seus representantes.
Na primeira sessão ocorrida na Câmara de Fortaleza, após o vereador Ronivaldo Maia ser preso, nenhum parlamentar usou seu tempo de fala para repercutir o caso. O silêncio prevaleceu na tribuna, mesmo entre os políticos que, nas redes sociais, se manifestaram contra “qualquer tipo de crime” e em apoio à mulher agredida pelo parlamentar.
Nos bastidores da sessão que marcou o retorno do político à Casa, porém, o clima foi de “camaradagem” entre parlamentares e de blindagem do vereador, uma vez que o acesso de repórteres ao plenário foi barrado por servidores do Legislativo Municipal. Nesse dia, a única voz que se levantou na tribuna em repúdio à postura da Câmara diante do caso de Ronivaldo foi a da vereadora Adriana Gerônimo (Psol).
“Homens ficam autorizados a continuar violentando mulheres. Se esta Casa não deu o exemplo do combate à violência contra a mulher, não temos como cobrar da sociedade civil a responsabilização de agressores, porque viramos as costas para um caso grave de tentativa de feminicídio”, discursou Adriana.
Logo depois, na condição de presidente da sessão parlamentar, o vereador Adail Jr. (PDT) iniciou um bate-boca no plenário e disse que Adriana tentou “usar colegas parlamentares como escada”.
“Espero que vossa excelência respeite o parlamentar porque todos nós fomos eleitos igual à vossa excelência. Aqui não é homem nem mulher, somos todos parlamentares e exigimos respeito”, disse o pedetista, que, além disso, afirmou que Adriana queria “se vitimizar demais”. “Nós todos fomos eleitos. Independentemente de partido, opção sexual. Temos que nos respeitar. Usar esse argumento de mulher, de opção sexual, como vítima, parou, amiga”.
Procurada pelo Diário do Nordeste após a discussão com Adail, Adriana disse que se sentiu “profundamente desrespeitada” pelo colega.
“Isso mexe com ego, com questões de camaradagem, que reinam na Câmara Municipal. Para mim, foi uma ação real, simbólica, de violência de gênero, uma das piores e mais comuns que acontecem, quando nos taxam de aproveitadoras, loucas, oportunistas, para nos rebaixar. Me senti profundamente desrespeitada. (...) Eu precisava responder, precisava me defender. A gente não pode se calar diante de situações como essa”, declarou a vereadora.
Violência política de gênero
Ao exigir que a Câmara se posicionasse diante de um caso de agressão cometido por um de seus parlamentares e ser rechaçada por um colega da Casa, que afirmou que ela queria se vitimizar por ser mulher, Adriana sofreu uma violência política de gênero.
O Instituto Igarapé, que reúne Evidências sobre Violências e Alternativas para mulheres e meninas, classifica a violência política de gênero como um “assédio político naturalizado na cultura política, refletindo práticas comuns que não são questionadas”.
É uma "nova" forma de violência que também tem se naturalizado nos últimos anos à medida que as mulheres ocupam os espaços de poder que têm direito. Isso, porque, uma vez inseridas nos debates legislativos, elas não se contentam “só” em pautar mais políticas públicas de gênero e contra a violência. Cobram, para além disso, que os parlamentos sejam e deem exemplo e que os colegas as respeitem como iguais.
Como exemplos dessa violência, o Igarapé cita “ataques verbais que exploram a sexualidade das mulheres e suas características físicas, como forma de desqualificá-las publicamente”.
“Nós, mulheres, estamos sempre sendo empurradas para o espaço privado”, diz a cientista política Paula Vieira. Segundo ela, comportamentos como o observado na Câmara, com o retorno de Ronivaldo à Casa, criam impedimentos para a participação mais ativa das mulheres nos espaços públicos como constrangimento, risco de serem alvos e risco de defenderem uma pauta que vai ser negligenciada pela visão masculina.
Com forte atuação na luta pelos direitos humanos, Marielle Franco, eleita como a quinta vereadora mais votada do Rio de Janeiro, foi assassinada a tiros em 2018. Ela é um dos principais símbolos da luta pelo fim da violência política de gênero no Brasil.
A especialista compreende ainda que, costumeiramente, há uma tentativa de silenciamento de parlamentares mulheres quando elas tentam pautar questões de gênero — sobretudo de violência. “Como são poucas mulheres (na Câmara Municipal de Fortaleza), por exemplo, fica uma voz destoante do pensamento geral. É um movimento mesmo de silenciamento, de dizer que não faz sentido, que a questão não tem alcance, diminuindo a demanda”, pontua.
Embora não reconheça ter sofrido violência política de gênero no exercício de seu mandato, a vereadora Cláudia Gomes reforça o discurso de Adriana e diz que se sente incomodada quando fala no plenário e não é ouvida pelos outros parlamentares ou quando suas falas são cortadas por eles. "Me sinto incomodada pela falta de atenção, por coisas que tendem a ocorrer bem menos com os colegas do gênero masculino", compartilha.
Agressões e ameaças físicas
Em outros casos, mais graves, há, também, ameaças e casos concretos de violência física contra mulheres parlamentares. Aconteceu na Câmara Municipal de Beberibe, no Litoral Leste do Ceará, no último dia 13 de abril, quando o vereador Hernandes (PSD), vice-líder da bancada de oposição na Câmara, ameaçou dar “chineladas” na prefeita do município, Michele Queiroz (PL), e incitou a população a fazer o mesmo quando tiver oportunidade.
Poucos meses antes, em setembro do ano passado, na Câmara Municipal de Iguatu, o vereador Louro da Barra (Republicanos) iniciou um bate-boca com a presidente da Casa e única mulher no parlamento municipal, a vereadora Eliane Braz (PSD), e teve de ser controlado pelos colegas. A caso chamou a atenção da Procuradoria Especial da Mulher da Assembleia Legislativa do Ceará (AL-CE), que solicitou providências sobre o caso.
Outras agressões políticas de gênero
Casos como esses estão espalhados pelo Brasil.
Em outubro do ano passado, na Câmara Municipal de Itauçu, em Goiás, a vereadora Kênia Pedroso (DEM) também denunciou comentários machistas feitos pelos colegas Betão (PSD) e Luisinho (Republicanos) após ela votar contrariamente ao projeto de cobrança da taxa do lixo no município.
“Que seja mulher ou homem, eu preferiria mil vezes que fosse um debate com homem. Seria melhor. Fico constrangido quando tem que debater com uma vereadora mulher”, afirmou Luisinho na Casa Legislativa. Betão, por sua vez, disse: “O que a vereadora está falando aí demonstra que ela está muito desequilibrada”.
Como no caso de Ronivaldo Maia, em Fortaleza, as violências acontecem até mesmo em partidos que historicamente militam contra a violência de gênero. Na Câmara Municipal de Niterói, no Rio de Janeiro, a vereadora Verônica Lima (PT), primeira mulher negra eleita na Casa, sofreu agressão verbal do vereador Paulo Eduardo Gomes (Psol), que perguntou se ela queria “ser homem” e disse que ia tratá-la “como homem” para constrangê-la por sua orientação sexual.
“Quando Paulo Eduardo questionou se 'eu queria ser homem' e disse que ia 'me tratar como homem', quis me constranger pela minha orientação sexual. Não quero ser homem! Sou uma parlamentar com diversas produções legislativas que dispõem sobre a violência contra as mulheres e o combate às opressões”, registrou a vereadora. No Twitter, ela disse ainda que Gomes chegou a avançar em sua direção e teve de ser contido por outros parlamentares.
No Rio, o diretório do PT lamentou que a postura tenha partido de um vereador do Psol, “que compartilha a defesa dos direitos das mulheres e da comunidade LGBTQIA+”. À época, o diretório municipal do Psol chegou a afastar o parlamentar das atividades legislativas por 60 dias. Porém, hoje, ele já está novamente ativo na Câmara.
Como combater?
O aumento da representatividade feminina na política, por si só, fortalece a luta das mulheres por ações de prevenção e combate à violência de gênero e por igualdade nas instâncias públicas de poder.
No entanto, de acordo com a cientista política Paula Vieira, para que a violência de gênero seja efetivamente combatida nos parlamentos e os debates públicos possam focar em ações mais propositivas do que reativas, é preciso garantir que os partidos responsabilizem seus filiados e que hajam procedimentos internos específicos e representativos contra parlamentares agressores de mulheres. "Na hora em que a gente deixa [essas decisões] nas mãos de comissões, com apenas uma mulher [como no caso da Câmara Municipal de Fortaleza], temos um desfalque. Isso não está alinhado", critica a pesquisadora.
Em Goiás, a vereadora Aava Santiago (PSDB), unida a quase 30 outras parlamentares de outros municípios e estados, criou a Frente Intermunicipal pelo Fim da Violência Política de Gênero. A intenção é conscientizar e mobilizar a população sobre a opressão enfrentada pelas mulheres que concorrem a ou exercem cargos eletivos.
Em agosto do ano passado, foi sancionada a Lei 14.192, que estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher. Para Paula, é preciso, agora, construir instrumentos para garantir a aplicação dessa lei, nos moldes do que foi feito com a Lei Maria da Penha, criada em 2006. "A violência doméstica, com a Lei Maria da Penha, foi o pontapé para todas as políticas públicas de violência contra a mulher. Criou canais de denúncia, procedimentos, deixou mais claro", explica
Além disso, Paula reforça que a violência de gênero é um dos temas mais consensuais entre as mulheres na política. "Conservadoras, progressistas ou de centro, todas tendem a ter um consenso sobre a pauta da violência contra a mulher. Não é só uma questão de posicionamento político, mas de eleger mais representantes", conclui.