Com grande vaivém no Congresso Nacional e com muitas mudanças no texto original, a Reforma Tributária foi aprovada nesta sexta-feira (15) em dois turnos na Câmara. A legislação já havia sido alterada no Senado e voltou para apreciação dos deputados. A expectativa inicial de simplificação na cobrança de impostos, para especialistas ouvidos pelo Diário do Nordeste, traz um cenário menos otimista frente às modificações de parlamentares.
Após a votação na Câmara, a lei segue para promulgação. É preciso, antes de mais nada, entender como funciona atualmente o esquema básico de tributação no Brasil. Tanto a União quanto estados e municípios cobram atualmente impostos sobre produtos e serviços, além de encargos especiais, como o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) e o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA). Com a Reforma Tributária aprovada no Congresso, cinco impostos deixam de existir nos três níveis de governo. São eles:
Federais:
- IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados): pago pelas empresas da indústria que fabricam produtos manufaturados;
- PIS (Programa de Integração Social): pago em cima de produtos e serviços e é voltado para a integração social dos trabalhadores. É comumente associado ao Cofins por gerar benefícios previdenciários, como abono salarial e seguro-desemprego;
- Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social): pago em cima de produtos e serviços e é voltado para a seguridade social dos trabalhadores. É comumente associado ao PIS.
Estadual:
- ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços): presente em todas as transações nos estados ou entre mais unidades da federação, incide quando um produto ou serviço circula entre cidades e estados ou de pessoas jurídicas (como empresas) para pessoas físicas.
Municipal:
- ISS (Imposto Sobre Serviços): presente em todas as transações nos municípios e no Distrito Federal, incide sobre serviços de qualquer natureza, como transporte municipal de passageiros.
Esses tributos serão substituídos por duas principais alíquotas, criando o chamado Imposto sobre Valor Agregado (IVA), a exemplo do que já acontece na maior parte dos países.
O IVA brasileiro será, majoritariamente, do tipo “dual”. Isso significa que produtos e serviços terão, em vez de cinco encargos, dois impostos que passam a incidir sobre os preços. Essas alíquotas são:
- CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços): reúne as atribuições de IPI, PIS e Cofins e será recolhido pela União;
- IBS (Imposto sobre Bens e Serviços): reúne as atribuições de ICMS e ISS e será recolhido por estados e municípios.
Uma das principais mudanças na nomenclatura dos impostos é de que os tributos não serão mais cumulativos ao longo da cadeia produtiva, de acordo com o texto aprovado. O CBS e o IBS serão cobrados apenas no local de consumo de produtos e serviços, com desconto do encargo pago em fases anteriores de produção.
Além dessas modificações, houve a definição de como será a cobrança desse IVA dual. Haverá quatro alíquotas que vão incidir sobre diferentes tipos de bens e serviços, sendo uma padrão (100%), duas diferenciadas (diminuição de 30% e 60% do valor cheio do imposto) e uma hipótese de isenção.
Segundo o texto aprovado na Câmara, terão redução de 60% os setores de:
- Alimentos destinados ao consumo humano e sucos naturais;
- Bens e serviços relacionados à segurança nacional, segurança da informação e segurança cibernética;
- Dispositivos de acessibilidade;
- Dispositivos médicos;
- Educação;
- Medicamentos e fórmulas nutricionais;
- Produtos agropecuários, aquícolas, pesqueiros, florestais e extrativistas vegetais;
- Produção de eventos, atividades artísticas e culturais, produções jornalísticas e audiovisuais nacionais, atividades desportivas e comunicação institucional;
- Produtos de higiene pessoal e limpeza consumidos por famílias de baixa renda;
- Produtos relacionados à saúde menstrual;
- Saúde;
- Transporte coletivo urbano de passageiros.
A redução de 30% será para os setores de prestação de serviços de profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, desde que submetidas a fiscalização de conselho profissional. No caso de bens e serviços isentos, ainda não há definição. Há a expectativa de que sejam incluídos:
- Aquisição de medicamentos pela administração pública;
- Atividades de reabilitação urbana de zonas históricas e reconversão urbanística;
- Automóveis para pessoas com deficiência;
- Automóveis para táxis;
- Entidades de inovação, ciência e tecnologia sem fins lucrativos;
- Medicamentos;
- Produtores rurais com receita anual de até R$ 3,6 milhões;
- Produtos de hortifrúti;
- Ovos;
- Transporte coletivo de passageiros.
É necessário ressaltar, porém, que não há nada definido acerca de como as alíquotas vão incidir. A cobrança cheia e a isenção, seja parcial ou total, do IVA dual depende de lei complementar, que ainda será elaborada e, na prática, estabelece como vai funcionar o texto da Reforma Tributária. Não há prazo para que essa legislação seja feita e votada.
ALÍQUOTAS DIFERENTES
Além do CBS e IBS, que incidirão sobre todos os bens e serviços, alguns produtos pagarão o chamado “imposto do pecado”. O Imposto Seletivo (IS) vai incidir como uma sobretaxa, sobretudo sobre materiais que sejam prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, como bebidas alcoólicas e cigarros.
Armas e munições também pagariam este encargo, exceto aqueles destinados à administração pública, mas os deputados da chamada "bancada da bala" conseguiram excluir o dispositivo que as incluia na reforma. Assim como o funcionamento do IVA dual, também será definida como vai atuar o IS através de lei complementar.
Profissões que têm regimes específicos, como aquelas inseridas no Simples Nacional, também terão tributação diferenciada. Isso inclui agências de viagem, planos de saúde e loterias, que atualmente já pagam menos impostos como forma de incentivo.
Outra alteração estabelecida na Reforma Tributária foi a criação de uma Cesta Básica Nacional, incluindo uma série de produtos que terão alíquota zero de IVA dual. Como todas as disposições da legislação, ainda depende de lei complementar.
Sobretudo voltado para famílias de baixa renda, haverá um cashback do imposto pago, isto é, parte dos tributos pagos serão devolvidos ao consumidor. A legislação estabelece que essa devolução será para o consumo de energia elétrica e gás de cozinha.
Está prevista ainda, na Reforma Tributária, a criação de dois fundos para setores específicos:
- Fundo de Desenvolvimento Regional: com o fim do ICMS e da chamada “guerra fiscal”, a União administrará recursos para promover regiões menos desenvolvidas, como o Norte e Nordeste do Brasil. Com prioridade para projetos ambientalmente sustentáveis, o Governo vai repassar, a partir de 2029, R$ 8 bilhões anualmente para essas áreas, com valores crescentes até R$ 60 bilhões a partir de 2043;
- Fundo de Compensação: outra medida para mitigar os efeitos do fim de benefícios fiscais. Haverá um repasse R$ 160 bilhões até 2032 por parte da União, que também vai arcar com eventuais perdas de arrecadação dos estados e municípios em razão do fim do ICMS e do ISS.
REFORMA DA 'ENCRUZILHADA'
Embora as mudanças na tributação indiquem que o Brasil terá uma simplificação no sistema tributário, especialistas acreditam que esse cenário, pelo menos em um primeiro momento, não deve trazer o impacto esperado. É o que indica o presidente da Comissão de Direito Tributário da Ordem dos Advogados do Brasil no Ceará (OAB-CE), Hamilton Sobreira.
“Com a aprovação da Reforma Tributária, não obrigatoriamente se espera uma simplificação da tributação. A Reforma supostamente vai unir cinco tributos em um IVA dual. Na verdade, vai haver uma concentração de poder na União Federal, ou seja, essa reforma tributária afeta o pacto federativo, o que deve ser vedado, que não pode sequer objeto de emenda constitucional”.
Outro ponto enfatizado por Sobreira está na cobrança desse IVA dual. Estimativas da equipe econômica do Governo Federal apontam que a tributação no Brasil será, no mínimo, entre 27% e 27,5% em um primeiro momento, o que não deve, na prática, diminuir a cobrança de alíquotas.
“Estão dizendo que os impostos não serão cumulativos em geral, mas isso só vai ficar para uma lei complementar que vai aplicar. Essa promessa da não cumulatividade também aconteceu no ICMS e a gente não viu vantagem. A Receita Federal está assumindo que vai aplicar em torno de 27%, 27,5% nesse IVA dual. Porém, na verdade, não está incluso ainda a tributação sobre lucro, como o Imposto de Renda, que pode ser também que altere e aumente. Não estão inclusos outros tributos federais, como o IPVA, que também vai poder ser alterado pelos estados, municípios devem perder a arrecadação, e por isso, tem que criar uma nova fonte de receita, como muito possivelmente algumas taxas. Me parece que deve haver um aumento da carga tributária”, explica.
O presidente da comissão de direito tributário da OAB-CE salienta que espera-se que o novo sistema tributário seja iniciado a partir de 2026, gradualmente, se estendendo ao longo dos 50 anos seguintes. Apesar desse prazo, Hamilton Sobreira critica o que chama de “encruzilhada”, frente à inexistência da lei complementar que coloque a reforma para funcionar de fato no País.
“Muita coisa vai ficar para lei complementar. Com ela em mãos, é como a gente vai entender como muita coisa vai acontecer na prática. Para ter uma ideia, O ICMS foi criado em 1988 com a Constituição, mas a lei complementar para tratar só sobre o ICMS demorou oito anos, até 1996. Você imagina a quantidade de informações nas páginas de Reforma Tributária? Fico na dúvida ou se eles colocam um prazo de 30 a 120 dias para fazer essa lei ou essa lei é feita às pressas ou se deixa sem prazo para poder fazer direito, mas a gente vai ficar sem legislação”, argumenta.
Tal cenário é endossado por Carlos Cintra, professor do departamento de Contabilidade da Universidade Federal do Ceará (UFC) e doutor em direito tributário. Para ele, apesar de o relator da proposta, deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-BA), defender que haverá uma redução de carga tributária, a reforma deve seguir o pensamento do atual Governo, de redução de déficit das contas públicas.
“O relator da proposta sustenta essa redução da carga tributária. Contudo, historicamente, alterações constitucionais sobre matéria tributária, em regra, são deflagradas para resolver 'problemas de caixa' da União, estados e municípios. Como o assunto que consta como “ordem do dia” é o temor proveniente do déficit na contas públicas, custa-me crer que, responsavelmente, as autoridades integrantes do Poder Executivo (nas esferas federal, estadual e municipal), admitam perder receita tributária”, avalia.
BENEFÍCIOS SELETIVOS
O professor da UFC ainda define que é prematuro dizer quais setores serão beneficiados em detrimento de outros, mas enxerga que sobretudo o segmento industrial, principalmente na área de transformação, poderão ser positivamente impactados.
“Alguns estudos econômicos apontam que exportadores, siderurgia e mineração serão beneficiados com a aprovação do projeto, enquanto que outros segmentos que atualmente dependem de incentivos fiscais (que não deverá ser prorrogados) poderão sofrer - varejo e tecnologia, sem falar que o setor de serviços pode ser afetado negativamente com possível alíquota elevada do novo Imposto sobre bens e serviços (IBS)”, expõe Carlos Cintra.
Apesar da indefinição de como vai funcionar a Reforma Tributária, sobretudo pela ausência de uma lei complementar, a advogada tributarista Leigeane Sarate infere que os consumidores saberão, de forma mais clara, como serão afetados pelo novo sistema de impostos.
“A principal mudança que os consumidores podem sentir com a reforma é a maior transparência na cobrança de impostos sobre produtos e serviços. A unificação dos tributos pode simplificar o sistema tributário, tornando-o mais compreensível para os consumidores. Além disso, a manutenção da cesta básica com alíquota zero de IVA dual deve ajudar a reduzir os preços de produtos essenciais para a população, tornando-os mais acessíveis”, pressupõe.
Em consonância com os demais especialistas, a advogada tributarista acredita que as mudanças ocorridas no texto no Congresso Nacional deixaram a legislação mais “subjetiva” em um contexto de melhorias ou dificuldades para diferentes setores de bens e serviços.
“Por um lado, as alterações podem ter introduzido maior flexibilidade e considerações específicas para diferentes setores e regiões do País. Por outro lado, essas mudanças também podem ter aumentado a complexidade do sistema tributário, o que pode dificultar sua implementação e fiscalização. O impacto real das mudanças dependerá de como o sistema será aplicado na prática”, diz.
Leigeane Sarate completa acrescentando a criação do fundo de compensação, voltado principalmente para os 16 estados do Norte e Nordeste do Brasil. Com o fim da guerra fiscal, essas unidades federativas não podem contar com o ICMS para atrair investimentos.
“Os estados do Norte e Nordeste podem ter buscado compensações no texto devido à preocupação com o impacto desproporcional da reforma tributária sobre suas economias, uma vez que são geralmente menos desenvolvidos e dependem mais dos repasses de recursos federais. As mudanças podem ter sido feitas para garantir uma transição suave para o novo sistema tributário e proteger a arrecadação desses estados”, influi.