2km a pé na lama até o fogo; primeira guarnição a chegar no incêndio no Cocó relata horas de sufoco

Tenente Aline comandou a primeira guarnição a atender a ocorrência no parque do Cocó e combater as ‘ilhas de fogo”

“Tenente Aline na escuta”. Já passava de 20h de quarta-feira quando chegava a primeira ocorrência do dia considerado, até então, tranquilo para a guarnição do Mucuripe que havia entrado no serviço 12 horas antes. A equipe seguia na viatura ABT S04 de volta ao quartel, mas recebe registro de “queimada em vegetação” e segue até o Parque do Cocó. 

A chamada localizava a Raul Barbosa, já dominada por fumaça, mas chegando lá não tinha como acessar foco de incêndio, ainda mais para carregar equipamentos a pé mangue a dentro. “O fogo está na área de mangue”, percebeu tenente Aline. A equipe da viatura ABT S04, com mais quatro homens sob o comando da oficial, sai em disparada numa rota improvisada pela avenidas Raul Barbosa, Murilo Borges e, alcançado a Rogaciano Leite, encontrar um ponto de acesso. Com pás, bomba costal e abafador, os cinco bombeiros seguem a pé por dentro de propriedades privadas até, finalmente, alcançar o ponto das labaredas.

Enquanto o fogo queimava o mangue o vento empurrava a fumaça para os bairros Aerolândia, Alto da Balança e Tancredo Neves. Era só o começo (pela manhã tomaria parte maior da cidade), mas populares das ruas Djalma Petit, Mundaú e Capitão Aragão estavam fora de suas casas. Não era por curiosidade, mas para respirar. No matagal, tenente Aline, os subtenentes Antônio, Nunes e cabo Padilha atolavam os pés por dois quilômetros de lama até alcançar os primeiros focos.

A prioridade máxima era que o fogo não chegasse às comunidades, um risco iminente para o bairro Tancredo Neves. Para o combate, foi necessário fazer a queimada de alargamento: aplicar fogo em uma área específica como forma de conter o incêndio ao alcançar esta mesma área. O reforço está logo ao lado: a guarnição de Messejana chega e se soma aos esforços. 

Enquanto as duas guarnições tentam ininterruptamente conter o incêndio pelas primeiras três horas, o tenente Waldomiro Loreto chega à ocorrência com outras equipes para fazer a logística: era preciso reconhecer a dimensão do incêndio e tentar de todas as formas que não atingisse residências - embora a região seja de extremos sociais e a fumaça alcança ricos e pobres, o incêndio seria um risco maior para as favelas.. Pior: os incêndios. Com uso de drones, foi possível identificar 12 focos. A sequência era proteger as residências, extinguir o incêndio e fazer o rescaldo para diminuir a fumaça. Para o bombeiro, já considerado entre os colegas um especialistas em combater incêndios com este, estava claro que a noite seria longa.

Tempo bom, caminho ruim

As condições meteorológicas favoreciam o combate: era noite, a temperatura estava em 26 graus célsius e a umidade a 71% (quanto mais úmido, menos chance para o fogo). O caminho dificultava: era lama até o joelho, vegetação seca e muita raiz, que queimava mesmo enterrada na lama. “Tinha que cavar um pouquinho, puxar as raízes e separar o combustível para poder acabar com o fogo. Basicamente era a única forma que tinha para controlar o incêndio”, explica Loreto.

Embaixo do viaduto no cruzamento das avenidas Murilo Borges com Raul Barbosa, dezenas de mulheres e crianças se apinhavam na madrugada para poder respirar. Antônio Lima, 72 anos, foi até a ponte sobre o rio Cocó entender o que estava acontecendo. “Era um fogo muito alto, parecia que ia tudo acabar”. Não houve registro de militares nem civis atingidos diretamente pelo fogo - o mesmo não se pode dizer de pássaros, peixes, cobra e capivaras atingidos pelas chamas.

Por ordem do comando do Corpo de Bombeiros, as guarnições se revezavam a cada três horas de combate. As ilhas de fogo já estavam identificadas. No momento mais crítico, foi possível medir 872 metros de linha de fogo, formando a letra V. Enquanto apagava o fogo com os demais, tenente Aline tinha certeza de que a primeira ocorrência do dia valia por muitas. “Chegou valendo”, admitiu. Diante do desafio, tentou manter a serenidade. “O mais importante é agir com profissionalismo, aplicar todas as técnicas que aprendemos”.

O fogo foi debelado às 13 horas de quinta-feira. As horas seguintes eram de encharcar com água (via helicóptero) os troncos grossos que ainda queimava para interromper a fumaça. Mas ainda na noite de quarta-feira o tenente Loreto não tinha mais dúvidas de que se tratava de incêndio intencional. O fogo cresceu contra o vento, fazendo com que as chamas se desenvolvessem mais lentamente e, principalmente, fossem preservados os pontos de origem. “Com certeza foi criminoso”. A perícia poderá se valer a partir desta sexta-feira dessa e de outras evidências deixadas pelo caminho do Cocó em chamas, pois como não há fumaça sem fogo, não há crime sem rastros.