Logo mais o Edifício São Pedro, na Praia de Iracema, em Fortaleza, deve sumir – após a decisão da Prefeitura de Fortaleza de demolição do prédio histórico, anunciada neste mês. Junto com o primeiro hotel da orla, vai embora o registro físico das histórias de moradores e das transformações da cidade. Por outro lado, diversas “testemunhas históricas” erguidas na capital cearense, também em estado de degradação, podem escapar da demolição.
São exemplos:
- Lord Hotel e a Escola Jesus, Maria e José, no Centro,
- Casa do Português, no bairro Damas,
- Farol do Mucuripe, no Cais do Porto,
- Casarão Colonial Mister Hull, no Padre Andrade.
O Diário do Nordeste consultou o contexto histórico destes imóveis em fontes como a Biblioteca do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Mapa Cultural da Secretaria de Cultura do Ceará (Secult/CE).
Para Solange Schramm, professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará (UFC), os imóveis podem ser restaurados e ganhar atividades práticas de acordo com a realidade de cada espaço.
“Há uma necessidade em Fortaleza, em cidades do interior do Ceará e no Brasil dos inventários. É conhecer para preservar”, reflete. Isso exige pesquisa e listagem dos bens distribuídos nos bairros.
Fortaleza tem desconsiderado muito do seu patrimônio que tem sido perdido. Durante a pandemia, por exemplo, tivemos a demolição da casa da família Gondim, na General Sampaio
Lord Hotel
Um “irmão” do Edifício São Pedro, o Lord Hotel foi fundado, em 1956, também pela família Philomeno Gomes, com 8 andares e 120 apartamentos, no Centro da Fortaleza. Começou hospedando comerciantes e viajantes. Nas décadas de 1960 e 1970, recebeu artistas e personalidades famosas.
O prédio é considerado um exemplar da arquitetura moderna cearense e, após a inauguração, entrou na lista dos melhores hotéis da Capital de Fortaleza, sendo arrendado a um casal de suíços até 1959. Já em 1992, foi transformado numa residência-hotel. O Lord Hotel também serviu como pousada e teve lojas comerciais.
Em 2001, o Governo do Estado propôs a demolição do imóvel e ofereceu indenizações aos proprietários e moradores. Essa proposta foi feita em razão da instalação do Metrô de Fortaleza com o indicativo que a estrutura do hotel não suportaria as obras da Estação da Lagoinha.
As últimas moradoras deixaram o prédio em 2011, quando já nada restava da imponência e da elegância do antigo hotel transformado em prédio residencial. Cerca de 40 famílias receberam indenizações para sair do edifício. O Lord Hotel recebeu tombamento provisório por meio do decreto Nº 11968, de 2006.
Em nota, a Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor) contextualizou que o "prédio foi cedido ao Município de Fortaleza em 2019, a pedido da Câmara Municipal, para a instalação da nova sede. Após desistência do legislativo, imóvel foi devolvido ao Estado".
Casa do Português
A edificação em concreto armada de três andares, com rampa para subir de carro até o teto, inaugurada em junho de 1953, chama atenção até hoje de quem passa pela Avenida João Pessoa, no Bairro Damas.
Surgiu como Vila Santo Antônio de José Maria Cardoso, mas em Fortaleza sempre foi conhecida como Casa do Português. Isso porque o proprietário da estrutura, José Maria Cardoso, era um comerciante vindo de Portugal.
José morou em um dos pavimentos com a família e alugou parte do imóvel para o empresário Paulo de Tarso, que instalou no edifício a Boate Portuguesa, entre 1962 e 1968. A Casa do Português também já sediou a Associação Nordestina de Crédito e Assistência Rural (Ancar) e a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Ceará (Emater-CE).
Em janeiro de 2006, por meio do Decreto Municipal 11.964, a Casa do Português foi tombada como sendo um bem cultural de natureza material. O imóvel foi vendido pelos herdeiros do José Maria, em 1985, mas não é usado como moradia há anos.
Conforme a Secultfor, o imóvel permanece privado e está com tombamento definitivo.
Escola Jesus, Maria e José
A Escola Jesus Maria José, no Centro, foi inaugurada em 1905 e dirigida por irmãs de caridade da congregação de São Vicente de Paulo. No local, crianças em situação de vulnerabilidade – muitas de famílias fugidas da seca – recebiam educação e evangelização.
Esse foi o propósito do prédio até os anos 1920, quando o lugar passou a ser usado para a Casa Paroquial, ao lado da Igreja do Pequeno Grande. Nas últimas décadas, no entanto, o prédio está abandonado e deteriorado apesar de ter Tombamento Histórico pelo Decreto Municipal Nº 12303, de 2007.
Já em 2014, o Diário do Nordeste registrou o cenário de paredes com rachaduras, vidros quebrados e janelas que se resumiam a pedaços de madeira em deterioração. Parte do teto havia caído e as paredes da esquina do edifício estavam escoradas por estacas.
A Escola Jesus, Maria e José foi ocupada por famílias em situação de vulnerabilidade que passaram a usar o espaço como abrigo, mesmo com a estrutura comprometida, em 2018. Um ano depois, 24 famílias foram retiradas do local.
“Está num estado lastimável e eu fico imaginando como numa época chuvosa como esta o estado de degradação vai avançar. Então, o tombamento é o início de um processo, mas poderiam existir outras formas de proteção do bem”, avalia Solange.
Em nota, a Secretaria da Cultura do Ceará (Secult) informou que o imóvel é particular. “A Escola Jesus, Maria e José, embora tombada pelo estado, não é um bem do Governo do Ceará, sendo a manutenção de responsabilidade do proprietário”, frisou.
Farol do Mucuripe
Um dos símbolos na bandeira do Estado do Ceará, o Farol do Mucuripe, no Cais do Porto, foi construído entre 1840 e 1846 por pessoas escravizadas para ser referência às embarcações que aportavam na cidade.
Uma reforma foi feita em 1872, mas o farol foi desativado em 1957 por se tornar obsoleto. Depois disso, houve uma recuperação em 1981, com projeto da Divisão do Patrimônio Histórico e Artístico da Secretaria de Cultura e Desporto do Estado.
O Farol do Mucuripe também é protegido pelo tombo estadual por meio do decreto n° 16.237, de novembro de 1983. Contudo, a degradação do espaço é motivo recorrente de reivindicação de reformas pela própria comunidade.
Além de ser uma das construções mais antigas da cidade, a população usa o espaço para práticas esportivas, artísticas e de socialização. A estrutura deve passar por uma reforma ainda no primeiro semestre deste ano.
“O Farol do Mucuripe será restaurado e as obras de estudo arqueológico já estão sendo realizadas. A previsão de início das obras é para este primeiro semestre de 2024, no valor de R$ 2,6 milhões”, informou a Secult.
Casarão Colonial Mister Hull
O Casarão Colonial Mister Hull, conhecido como “Chácara Salubre”, está numa área de 4,8 mil m², no bairro Padre Andrade, sendo uma construção de 1802. A edificação é uma testemunha viva da História no Ceará.
Os cômodos que já sediaram reuniões secretas contra a escravidão, lideradas pelo poeta e jornalista Antônio Bezerra de Menezes, mas estão hoje tomados por ruínas. No local, como registrou o Diário do Nordeste, há alvenaria desabada, telhado podre e móveis quebrados.
Em julho de 2020, a Prefeitura tombou provisoriamente a Chácara Salubre, mas os proprietários indicaram que não tinham recursos financeiros para preservá-la. Em abril de 2022, a Defesa Civil interditou o local por riscos de queda das estruturas.
“A chácara está bastante arruinada, mas ainda tem os elementos originais e, portanto, é absolutamente viável um trabalho de restauração daquele imóvel”, aponta a professora.
A Secultfor, com informações da Defesa Civil, informou que o imóvel privado "encontra-se interditado devido ao péssimo estado de conservação". A reportagem também consultou a família proprietária da Chácara Salubre, que informou sobre novos danos à estrutura com as chuvas deste ano.
No momento, há um impasse sobre o futuro do local pela impossibilidade de venda devido ao tombamento e a falta de orçamento familiar para a recuperação do imóvel.
Preservação da memória
Os imóveis históricos de uma cidade merecem ser preservados para garantir a permanência de registros das transformações sociais e culturais da cidade.
“Nenhuma cidade merece ser engessada, o que a gente observa é que a transformação faz parte da história e a ideia é como o novo pode não apagar o antigo. Esse desafio requer inventários e fortalecimento dos órgãos de patrimônio”, avalia Solange.
A gente não preserva por preservar, mas para dar um uso: essa é a questão primordial. Pode servir para usos diversos, podemos ter pequenas escolas, restaurantes e usos compatíveis com o tamanho e a natureza do imóvel
Para resguardar o que ainda é possível, a professora defende a manutenção e a conservação dos imóveis.
“As secretarias regionais poderiam ter um núcleo especializado, com a presença de arquitetos. Com a quantidade de cursos de arquitetura no Ceará, seria uma oportunidade de trabalho e a cidade ganharia muito”, propõe.
O que é feito
A Secretaria da Cultura do Ceará informou que “contribui ativamente para a qualificação de diversos bens históricos, à exemplo da Estação Ferroviária Dr. João Felipe, que foi restaurada, modernizada e reinaugurada como o Complexo Cultural Estação das Artes”.
Também citou o Palacete Senador Alencar, prédio que sedia o Museu do Ceará desde 1990, que é tombado em âmbito nacional. “A edificação está sob gestão da Secult Ceará e vai passar por restauro e reforma de R$ 4,5 milhões, anunciados pelo Governo do Ceará”, completou.
“A política de Patrimônio Cultural e Memória vai além dos instrumentos de proteção, editais e fiscalizações. Em 2021, foi implantada uma nova forma de acautelamento, a chancela da paisagem cultural, e, em 2022, foi sancionado o Código do Patrimônio Cultural, instrumento jurídico que agrupou as diversas formas de preservação formal do patrimônio em um único documento”, detalhou a Secult.