Fortaleza tem 23 mil crianças na fila para tratamento de transtornos como autismo na rede municipal

Do total, pelo menos 1.500 são diagnosticadas com Transtorno do Espectro Autista (TEA)

Conseguir tratamento para transtornos neurológicos e de desenvolvimento na rede pública de saúde tem sido exercício de paciência para famílias de Fortaleza. Neste mês, 23.774 crianças com diversas deficiências aguardam na fila de triagem para terapias.

Do total, cerca de 1.500 são diagnosticadas com Transtorno do Espectro Autista (TEA). As demais têm outras alterações neuropsicomotoras ou ainda estão sem laudo. Todas esperam por consulta inicial com profissionais para saber que tipo de terapias devem receber.

As informações são de Luciana Passos, coordenadora das Redes de Atenção Primária e Psicossocial (RAPS) de Fortaleza, dadas em entrevista ao Diário do Nordeste e também durante audiência pública do Ministério Público do Ceará (MPCE) sobre os déficits na assistência ao TEA no Estado, na segunda-feira (22).

Luciana explica que essas milhares de crianças já passaram por consulta com neurologista e receberam encaminhamento para a triagem, feita por especialistas como fonoaudiólogo, psicólogo e terapeuta ocupacional.

“Elas, então, avaliam e determinam o tipo de terapia. É um grande entrave do sistema, mas o mais importante é que tenham celeridade para começar (o tratamento)”, destaca a coordenadora, que é médica de família e comunidade.

Segundo ela, “é preciso trabalhar o aumento da oferta” de locais de reabilitação para TEA e outros transtornos, disponibilizada hoje em equipamentos conveniados e em policlínicas de Fortaleza.

Trabalhamos nas policlínicas extrapolando a capacidade delas de reabilitação, e sabendo que (pessoas com) TEA ficam por muito tempo nas terapias, e isso impede entradas de novos pacientes.
Luciana Passos
Médica e coord. da RAPS

Hoje, de acordo com a coordenadora da RAPS, apenas 5 equipamentos oferecem consulta inicial pela rede pública para triagem dos pacientes com alterações neuropsicomotoras:

  • Apae (21 vagas)
  • Casa da Esperança (15 vagas)
  • Centro de Atendimento Educacional Especializado Pestalozzi (2 vagas)
  • Centro de Integração Psicossocial do Ceará (8 vagas)
  • Instituto Moreira de Sousa (23 vagas)

Outros 5 locais recebem crianças com TEA para reabilitação e acesso a terapias:

  • Centro Integrado de Atendimento e Reabilitação - CIAR (8 vagas)
  • Policlínica Dr. João Pompeu Lopes Randal (24 vagas)
  • Policlínica Dr. Luiz Carlos Fontenele (16 vagas) 
  • Policlínica Lusmar Veras Rodrigues (12 vagas)
  • Espaço Seres (10 vagas)

Para os demais transtornos, com exceção do TEA, apenas dois equipamentos do SUS estão disponíveis aos pacientes para reabilitação: o CIAR (12 vagas) e a Policlínica Dr. João Pompeu Lopes Randal (4 vagas).

A médica Luciana Passos avalia que é preciso capacitar os profissionais da atenção primária para refinar os diagnósticos, que crescem a uma velocidade que a rede de assistência não tem conseguido acompanhar.

“Precisamos ampliar o conceito de TEA, sair do mundo da saúde e ir pro social e educação. Não sei se são sustentáveis esses diversos laudos de TEA, que têm impactado até em benefícios como BPC (Benefício de Prestação Continuada) e aposentadorias”, cita Luciana.

A reportagem questionou à Secretaria Estadual da Saúde (Sesa) quantas pessoas estão na fila de espera para atendimento especializado em TEA em todo o Ceará. A informação também foi exigida à Pasta pelo MPCE, durante audiência pública na segunda (23).

A coordenadora das Redes de Atenção à Saúde da Sesa, Rianna Nobre, afirma que “esse levantamento exige mais tempo”, visto que é preciso olhar para as especialidades requeridas por pacientes com TEA e identificá-los. 

Fila para conseguir consulta

Quem está em busca de acessar as terapias especializadas já vem de outra saga: a espera para conseguir consulta com neurologista pediátrico. Hoje, são mais de 27,6 mil crianças aguardando pelo atendimento, das quais 529 têm suspeita de autismo. 

O fluxo seguido na rede municipal é o seguinte: primeiro, a criança precisa ir a uma consulta geral no posto de saúde; de lá, será encaminhada ao neurologista pediátrico, que, se for o caso, direciona o paciente à busca por terapia da condição neuropsicomotora.

Erros nesse percurso têm inflado as filas de espera, segundo a coordenadora da RAPS de Fortaleza. “Temos diversidade de encaminhamentos, até de forma errada. Temos verificado junto aos profissionais, pra entender o problema”, reconhece.

34
médicos estão registrados no Conselho Federal de Medicina (CFM) como neurologistas pediátricos em todo o Ceará, 25 deles com atuação em Fortaleza.

Luciana destaca, ainda, que a SMS tem orientado os médicos dos postos de saúde “pra que deem o máximo de informações sobre o quadro do paciente, no encaminhamento ao neuro”. Isso porque casos de suspeita de TEA, por exemplo, são priorizados.

“Ao entrar na fila (para consulta com neurologista), são vistas as informações colocadas pelo médico do posto e são priorizados de acordo com a necessidade. Quanto mais informações houver, melhor. Se colocar só ‘TEA’, não é qualificado, o regulador não tem embasamento”, frisa.

Hoje, somente 3 locais ofertam consulta em neurologia pediátrica pela rede municipal de saúde de Fortaleza:

  • Núcleo de Tratamento e Estimulação Precoce – Nutep (4 vagas)
  • Sopai – Hospital Infantil Filantrópico (20 vagas)
  • Posto de Saúde Maria de Lourdes (90 vagas para avaliação de suspeita de TEA)

6 novos Núcleos TEA em Fortaleza

Em outubro de 2023, o Ministério da Saúde (MS) publicou portaria determinando a implementação de Núcleos de Atenção à Criança e Adolescente com Transtorno do Espectro Autista (TEA) nos municípios brasileiros. 

“É um ponto de atenção ambulatorial especializado em reabilitação/habilitação que realiza avaliação, diagnóstico e acompanhamento multiprofissional”, define a Pasta federal, que repassará R$ 100 mil por mês ao ente administrador da unidade de saúde.

O público-alvo dos núcleos é a população de 0 a 18 anos, e cada equipamento deve realizar no mínimo 1.500 atendimentos por mês, conforme nota técnica divulgada pelo MS.

Fortaleza deve ter, nos próximos anos, a instalação de 6 Núcleos TEA. O primeiro deles será localizado na Regional 2, e deve entrar em funcionamento no início de agosto.

O Diário do Nordeste questionou à coordenadora da RAPS, Luciana Passos, sobre detalhes como localização exata dos núcleos, valores de investimento e quando serão abertos, mas a médica “não pode informar” – garantindo, porém, que serão “descentralizados”.

Segundo Luciana, profissionais já estão sendo convocados para atuação na unidade especializada, que deve contar com fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos, psicólogos, pedagogos, assistentes sociais, nutricionistas e neurologistas ou psiquiatras.

14 novos Núcleos TEA no Estado

Além da capital, cidades do interior do Ceará também contarão com serviços de referência para pessoas com TEA: de acordo com a Sesa, serão 14 núcleos. Assim como a municipal, a secretaria estadual tampouco informou detalhes sobre onde e como funcionarão.

Rianna Nobre, coordenadora das Redes de Atenção à Saúde da Sesa, afirmou, em entrevista ao Diário do Nordeste, que “o Estado está num processo de planejamento, de estudo técnico e identificação de necessidades pra implantar os 14 novos serviços”.

Demandas não atendidas

O médico Alexandre de Aquino, coordenador dos ambulatórios de psiquiatria da infância e adolescência do Hospital Geral de Fortaleza (HGF), estima, a partir de estudo do Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA, que haja em Fortaleza quase 24 mil crianças e adolescentes e 35 mil adultos autistas.

Ele pontuou, durante a audiência pública do MPCE, que o diagnóstico tardio, a falta de capacitação dos profissionais e a demora e burocracia nos encaminhamentos contribuem para retardar a identificação do transtorno.

“No HGF, às vezes atendo uma criança com 2 anos, consigo identificar que tem sinais de autismo e precisa de servuço estimulação precoce, Mas não consigo encaminhar. Dou o encaminhamento, mas ela precisa ir até o posto de saúde e de lá é encaminhada ao serviço. Nesse processo, demora 2 anos”, lamenta o médico.

O psiquiatra destacou os principais gargalos no atendimento a esse público:

  • Escassez de serviços especializados: com carência de centros de referência e serviços de intervenção precoce;
  • Limitações de cobertura: nem todas as terapias necessárias estão disponíveis ou são cobertas pelo SUS, como a terapia ABA (análise do comportamento aplicada);
  • Falta de integração: a falta de um plano de cuidado integrado e de comunicação entre diferentes níveis de atenção à saúde pode resultar em cuidados fragmentados;
  • Acompanhamento inadequado: após o diagnóstico, muitos pacientes têm dificuldades em manter um acompanhamento contínuo e sistemático, devido à falta de recursos e profissionais;
  • Ambientes pouco adaptados: as unidades de saúde frequentemente não possuem infraestrutura adequada para atender às necessidades sensoriais e comportamentais de pessoas com autismo.

A falta de apoio psicológico às famílias de pessoas autistas e a “falta de orientações claras acessíveis sobre direitos, serviços disponíveis e como acessá-los”, como acrescenta Alexandre, também se colocam como demandas relacionadas às pessoas com TEA.

Ao fim da audiência pública realizada pelo MPCE na segunda-feira (23), foi fixado o prazo de 15 dias úteis para os órgãos públicos municipais e estaduais fornecerem informações precisas sobre o atendimento de pessoas com transtornos neuropsicomotores na saúde e na educação.

À Sesa e à SMS de Fortaleza, o MPCE solicitou informações em relação à quantidade pessoas com TEA, neurodeficiências e outros transtornos de neurodesenvolvimento que são atendidas ou que aguardam atendimento no SUS; além de mais detalhes sobre a qualidade e a abrangência dos serviços que são ofertados.

À Escola de Saúde Pública do Estado do Ceará (ESP/CE), "foram requeridas mais informações sobre o treinamento de pediatras, clínicos gerais e psiquiatras para o atendimento de pacientes com TEA, além do planejamento sobre a capacitação ampliada de profissionais da saúde para atuarem com esse público", informou o MP em nota ao Diário do Nordeste. Uma reunião com o superintendente da ESP/CE acontecerá em data a ser definida.

Por fim, as Secretarias Estadual (Seduc) e Municipal de Educação de Fortaleza (SME) "devem apresentar informações sobre o número de pessoas com TEA matriculadas atualmente, detalhes sobre o Atendimento Educacional Especializado (AEE) oferecido para pessoas com TEA, incluindo a quantidade de profissionais e a estrutura ofertada a eles", complementou o MPCE.