Extintos por mais de 100 anos da história oficial do Ceará, os povos indígenas que habitam o Estado vivenciam um processo de recuperação étnica desde a década de 1970. Depois de viverem escondidos para não sofrerem novos massacres, hoje lutam pela demarcação de terras e direitos básicos, como saúde, educação e saneamento.
Nesta semana, o Diário do Nordeste publica a série “Originários”, após percorrer os 4 povos indígenas da Região Metropolitana de Fortaleza (RMF): Tapebas e Anacés, em Caucaia; Pitaguary, entre Pacatuba e Maracanaú; e Jenipapo-Kanindé, em Aquiraz. Ao longo de fevereiro, a reportagem ouviu suas demandas e dilemas e presenciou danças e rituais que tentam conservar para as próximas gerações.
Antes de lutar por decisões práticas, os indígenas cearenses precisaram confirmar a própria existência. O Estado viveu um processo de colonização tardio, quando comparado a outras capitanias nordestinas, como Pernambuco e Bahia, e os povos originários que aqui residiam manifestaram ampla resistência ao avanço dos portugueses.
Pouco a pouco, de massacre em massacre, foram sendo empurrados do litoral para o interior do Estado, criando diferentes fluxos migratórios. A negação de sua existência foi assinada até mesmo em papel: em 1863, o então presidente da Província do Ceará, José Bento da Cunha Figueiredo, declarou à Assembleia Legislativa que a população indígena cearense estava extinta.
O decreto acabou oficializando a expropriação das terras dos povos originários. Um contrassenso, pois o próprio nome do Estado vem de “siará”, que significa “canto da jandaia” - na linguagem tupi, um tipo de papagaio.
Segundo o memorial da Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Ceará (Fepoince), para se pouparem e protegerem as próprias vidas, eles “tiveram que permanecer em silêncio sobre suas etnicidades por mais de um século”.
Só nos anos 1970, a mobilização social no Ceará tirou os indígenas da invisibilidade e passou a exigir a efetivação de seus direitos, iniciada pelos povos Tapeba, Tremembé, Pitaguary e Jenipapo-Kanindé.
Hoje, existem 15 povos indígenas no Estado, espalhados pelo litoral, serra e sertão.
O movimento de retomada - como eles chamam a reaquisição de terras e direitos - ganhou força em 1984, quando o cardeal Dom Aloísio Lorscheider criou a Pastoral Indigenista na Arquidiocese de Fortaleza e se engajou pessoalmente na causa.
Em 1989, a nova constituição estadual não só reconheceu a existência de indígenas no Ceará como comprometeu seus organismos públicos a darem-lhe assistência.
Nos últimos 50 anos, o autorreconhecimento foi ganhando força. O Censo de 2000 indicava uma população de 12.198 indígenas no Estado. No levantamento seguinte, em 2010, o número cresceu para 20.697. Em 2015, estimativa do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) já dava conta de 29.211 pessoas.
Juliana Alves, a Cacika Irê do povo Jenipapo-Kanindé, titular da inédita Secretaria dos Povos Indígenas do Governo do Ceará (Sepince), explica que hoje a população total já pode ter passado de 50 mil. O número atualizado deve sair com a finalização do Censo 2022.
A gestora reconhece que a demarcação é necessária para todas as comunidades, mas não será a única política pública articulada institucionalmente. Entre as áreas que devem ser discutidas, estão:
- esporte e lazer para a juventude, com demandas por areninhas, bibliotecas e academias populares;
- emprego e renda, porque ainda há precariedade de negócios próximos às comunidades tradicionais;
- apoio às mulheres indígenas;
- educação escolar indigena e formação de professores.
“Claro que são ações que não vamos demandar a curto prazo, são a médio e longo. Vamos trabalhar com várias pastas, sempre com muito diálogo com o governador e outros secretários”, projeta Irê.
Atualmente, além de articulações próprias e de contar com o apoio de organizações da sociedade civil, as comunidades indígenas também necessitam de cooperação com outros órgãos públicos para fiscalizar a efetivação das leis.
O Diário do Nordeste questionou à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), desde o dia 9 de fevereiro, como está o andamento do processo de demarcação dos quatro povos mencionados; como monitora situações de ameaça/violência contra eles e que diagnóstico possui quanto à necessidade de saúde, saneamento e educação dessas populações. Porém, decorridas três semanas, não houve resposta.
Em nota, o Ministério Público Federal no Ceará (MPF-CE) informou que pode atuar na defesa dos direitos indígenas a partir de demandas recebidas da sociedade e por iniciativa própria, quando toma conhecimento de possíveis atos que atentem contra a legislação brasileira e contra os direitos assegurados aos cidadãos.
“Nos últimos anos, o órgão atuou em temas como segurança, saúde, alimentação e demarcação de terra indígena na Região Metropolitana de Fortaleza”, esclarece. Entre as ações, estão pedidos de manutenção da infraestrutura de escolas e do impedimento à venda e locação ilegais de imóveis a não indígenas.
Ameaças constantes
Embora tenha havido conquistas, essa trajetória também foi marcada por inúmeras ameaças de violência contra lideranças que tomaram a frente dos processos demarcatórios, ao enfrentarem interesses comerciais ou empresariais em suas respectivas áreas.
Paulo França Anacé teve um revólver apontado para a própria cabeça. Elber Anacé já foi vigiado e impedido de ficar em casa. Clécia Pitaguary recebeu ligações perguntando por que não havia seguido o caminho de sempre, onde seria emboscada e morta. Os Tapebas ainda têm receio de se manifestarem publicamente de forma mais enérgica.
“Ainda há o estereótipo do indígena como povo da mata, mas no Nordeste, houve uma agressão diferente. O povo de outras regiões tem minérios que funcionaram como moeda de troca; aqui, a gente só tem a terra”, reflete o pedagogo Elber Anacé, jovem liderança desse povo em Caucaia.
Mesmo com a garantia de forças de segurança de que não há mais riscos como há alguns anos, Clécia Pitaguary ainda não consegue “andar de peito aberto”. A comunicação com ela ainda é intermediada, os itinerários são calculados, a família também é orientada a se cuidar.
“Existe um projeto de destruição que a gente não permite. Já tive muitos conflitos, denunciei várias vezes, me ameaçaram na frente dos policiais. Tem gente grande que se incomoda, mas também tem gente pequena que não gosta”, afirma Clécia.
Questionamos à Polícia Federal no Ceará (PF-CE) como a PF atua nesses casos e se há um monitoramento permanente quanto a essas situações. O órgão respondeu que não se manifesta e que as investigações em curso seguem em sigilo legal. Também ressaltou que recebe notícias de crime através dos canais oficiais disponíveis.
Educação diferenciada
Como levantado pela Cacika Irê, um dos pontos de atenção dos povos indígenas cearenses é a educação, entendida como modificadora da realidade. Atualmente, a Secretaria da Educação do Ceará (Seduc) mantém 39 escolas indígenas (EI), com matrícula superior a 7 mil estudantes. Do total de unidades, 14 ficam na Região Metropolitana.
Uma delas é a Escola Ita-Ara, do povo Pitaguary, em Pacatuba, inaugurada em 2009. Antes, a casa de apoio da comunidade era que funcionava como espaço educacional. “A intenção da construção da escola partiu da necessidade de manter nossa cultura viva”, comenta a professora Vitória Pitaguary, 27.
A gente recebe a grade curricular, mas procuramos inserir algo da nossa cultura para que ela não morra. Nossos troncos velhos estão morrendo, então temos que passar para a base. Fazemos inclusive noites culturais e envolvemos toda a comunidade, a cada 2 ou 3 meses.
Thiago Halley Anacé, professor indígena e membro da diretoria executiva da Organização dos Professores Indígenas do Ceará (Oprince), defende que as escolas indígenas sejam valorizadas na infraestrutura, saindo de espaços alugados ou improvisados, e tenham quadros próprios de docentes.
Por isso, aguardam um inédito concurso público para a seleção de professores efetivos na rede estadual, anunciado em maio de 2022 pela então governadora Izolda Cela. Estão previstas 200 vagas para contemplar 13 etnias, mas até o momento, não houve efetivação da promessa.
Segundo Thiago, as EI se diferenciam das escolas convencionais porque colocam o território como centro da discussão: integram as histórias de vida das lideranças, a luta pela terra e a cosmovisão daquele povo.
“É diferente porque o afeto é muito presente. Todos se tratam como parentes porque realmente são parentes. Há muito cuidado. O aluno consegue se ver naquele aprendizado e dá a esse saber uma perspectiva de utilidade: estou manuseando esse conhecimento porque é o que eu vivo”, garante.
A Seduc informou que os Projetos Político-Pedagógicos (PPPs) das Escolas Indígenas são construídos pela comunidade escolar e das lideranças de cada etnia, incluindo Cacikas/Caciques, Pajés e Troncos Velhos, “pois eles são os que possuem saberes ancestrais sobre território, cultura, identidade e espiritualidade”.
Os currículos “valorizam suas identidades étnicas, suas línguas, seus saberes tradicionais e as ciências, propondo conhecimentos técnicos e científicos locais e universais sistematizados por sujeitos indígenas ou não indígenas”.
Sobre o Concurso Público direcionado aos professores indígenas, a Secretaria respondeu que a empresa que vai operacionalizar o concurso está em fase de contratação.
Saúde e saneamento
O acesso às comunidades, a maioria em localidades fora dos grandes centros urbanos, é outro tópico criticado pelas lideranças.
Para os Anacés do Planalto Cauípe, em Caucaia, a locomoção para escolas e postos de saúde se torna ainda mais complicada em períodos de chuva, quando a estrada de barro se deteriora e cria grandes poças, como constatado pela reportagem durante a visita.
Entre os Jenipapo-Kanindé, na Lagoa da Encantada, a demanda é pela pavimentação, pelo menos de pedra tosca, da principal via de acesso, de acordo com Carline Alves, diretora da escola indígena da comunidade.
Em paralelo, o saneamento é um ponto chave para o acesso à saúde. Entre os povos visitados pelo Diário do Nordeste, os Anacés enfrentam a maior dificuldade, já que não há uma unidade básica para esse povo. Assim, é preciso percorrer 15km até o posto indígena mais próximo, ou buscar o posto convencional.
O Distrito Sanitário Especial Indígena do Ceará (Dsei-CE) conta atualmente com 9 polos base, incluindo entre Tapebas, Pitaguarys e Jenipapos-Kanindés, para o atendimento a 105 aldeias. O Ministério da Saúde confirmou que mais de 38 mil indígenas são beneficiados.
Para a instalação de um polo, segundo a Pasta, é preciso que o território indígena seja tradicionalmente ocupado e tenha avaliada a organização do próprio povo, etnia, cultura, hábitos e tradições, acesso, barreiras e/ou dispersão geográficas.
“O atendimento básico à população nos territórios indígenas é de responsabilidade do DSEI. Já para os indígenas que estão fora desses territórios, o atendimento é realizado pelos municípios”, finaliza o Ministério.