Laqueadura sem filhos: ‘Disseram que eu estava indo contra a natureza da mulher’

Procedimento de esterilização é garantido por lei para mulheres a partir dos 25 anos ou com dois filhos, mas jovens relatam barreiras e tabus antes de alcançar o centro cirúrgico

Casar antes dos 30 anos ou vai ‘ficar para titia’, ter filhos ou não vai ser plenamente feliz, trabalhar fora ou se dedicar aos filhos? São muitas as imposições sociais na vida de uma mulher e algumas delas abrem espaço para o desamparo de direitos não assegurados. O caso da menina de apenas 11 anos que sofreu um estupro e teve o procedimento de aborto legal negado estarreceu o País, mas escancarou as fragilidades dos direitos reprodutivos.   

O caso, porém, não é isolado, nem só para essas situações. A estudante Ana Carolina Albuquerque, de 26 anos, desde a adolescência tem a certeza de que não quer ter filhos e aguardava ansiosamente a chegada dos 25 anos para realizar um procedimento de esterilização, também conhecido como laqueadura tubária ou salpingectomia.  

Assim com ela, são muitas as mulheres que não desejam ter filhos e buscam métodos de esterilização para evitar uma gravidez indesejada. O método consiste na ligadura ou no corte das trompas uterinas, canais que ligam os ovários ao útero.  

“Eu não tenho um só motivo pelo qual não quero ser mãe, posso dizer vários. Nunca tive vontade, não tive muito essa personalidade maternal. Acredito que não seria algo bom nem pra mim nem pra um possível bebê, então pra mim não faz sentido”.  
Ana Carolina Albuquerque
estudante

A realização desse desejo aconteceu em outubro de 2021 e, hoje, quase nove meses depois do procedimento a estudante conta estar realizada. “Foi um segundo aniversário pra mim, porque sou tão feliz com essa minha decisão”. O primeiro mês de cirurgia foi até comemorado por ela com um bolinho.  

‘Contra a natureza da mulher’ 

Apesar de ter tido apoio da família, do namorado e de amigos, Ana Carolina conta que chegou a ser criticada por médicos e conhecidos. “Senti mais pressão de pessoas que não eram próximas a mim. Disseram que eu tava indo contra a natureza da mulher, mas eu não sou menos mulher por não querer ter filhos”.  

“E isso é o machismo da sociedade, porque é uma característica muito comum nos homens, de não querer ter filhos, e isso não quer dizer que a pessoa é ruim, ela só não quer ter filhos”, pondera. 

Até conseguir chegar ao profissional que realizou no procedimento, Ana passou por outros dois médicos, que negaram fazer. “Um deles se negou a me operar porque era cristão e disse que não fazia o procedimento em mulheres sem filhos, como se fosse meu papel ser mãe”.  

“É como se a mulher só fosse se realizar sendo mãe”, reitera a estudante Stephanie Pessoa, de 33 anos, que também sentiu a pressão social por não querer ter filhos. Após passar por uma experiência de suspeita de gravidez, ela teve a certeza de que gestar um bebê não seria uma escolha feita por ela.  

“A certeza veio com um relacionamento que eu tive, eu sentia que vinha muito do cara querer que eu tivesse um filho com ele pra gente ter uma ligação. A partir disso, eu fui entendendo que eu não queria”.  
Stephanie Pessoa
estudante

Barreiras e os ‘nãos’ 

Embora seja um direito garantido por lei, ambas relatam ter enfrentado barreiras até conseguir fazer o procedimento e adiantam que estar bem informada é fundamental. “Meu processo se deu até de forma rápida, o que surpreendeu. Achei que seria um longo caminho: passar pelo médico, levar um ‘não’, ligar pro plano pra autorizar, procurar outro médico...”, diz Stephanie. 

O primeiro ‘não’ veio da ginecologista que a acompanhava há anos. “Ela me sugeriu colocar o DIU, porque não fazia procedimentos cirúrgicos, então fui atrás de um cirurgião. Perguntei sobre o DIU e falei da minha intenção de fazer a laqueadura, quando viu minha idade, disse que eu tava apta a fazer”.  

Depois, começaram os trâmites mais burocráticos do processo de organizar a documentação e, sobretudo, a mente. Foram cerca de três meses de espera, o que levou Stephanie a questionar se realmente queria fazer a cirurgia. “Uma sucessão de acontecimentos me levou a ter a certeza que era aquilo que eu queria, eu não consigo me ver sendo mãe”.  

Quando ia para as consultas médicas, Ana Carolina já ia pronta: colocava uma pastinha embaixo do braço com todas as informações da lei, resoluções dos Conselhos de Medicina, artigos médicos e, mesmo assim, levou duas rejeições.  

“Eu li muito antes de fazer o procedimento e queria estar preparada caso algum médico contestasse meu direito”.  
Ana Carolina Albuquerque

Esterilização em queda 

Porém, as dificuldades para a realização do procedimento também atingem aquelas que já têm filhos. Conforme a lei, podem passar pela esterilização mulheres com mais de 25 anos ou que tenham dois filhos.  

“É bem difícil, tô na minha segunda gestação, com 39 anos e sendo acompanhada por ser de alto risco devido à toxoplasmose e, mesmo assim, ainda não vou conseguir fazer. Os médicos falaram que só podia fazer se fosse a terceira cesária... Aí a pessoa é obrigada a se encher de filhos pra conseguir", disse uma mulher em relato em grupo de Facebook.  

“Eles te vencem no cansaço. Rebolam a mulher grávida de um lado ao outro, eu na minha quarta gravidez querendo laqueadura e não fui atendida”, disse outra.  

As barreiras relatadas por pacientes são tanto para os procedimentos realizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) quanto pelos planos de saúde privada. A queda nos números de cirurgias realizadas nos últimos anos no Ceará refletem as dificuldades.  

Em 2021, foi registrado o menor número de laqueaduras tubárias pelo SUS desde 2008. No ano passado, somente 864 cirurgias foram realizadas, enquanto em 2008, foram 3,5 mil. Os dados são Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS), do Ministério da Saúde.  

O que a legislação brasileira prevê? 

Ana Carolina e Stephanie estavam amparadas pela legislação para a realização do procedimento. A advogada e secretária-geral da Comissão de Saúde da OAB-CE, Thaynara Nazaro, explica que tanto a laqueadura quanto a vasectomia são regulamentadas pela Lei do Planejamento Familiar (Lei Nº 9.263/96).  

“Os procedimentos podem ser feitos em homens ou mulheres com mais de 25 anos ou com dois filhos. Em nenhuma das circunstâncias pode haver cirurgia em pessoa com algum tipo de incapacidade, somente por autorização judicial”.  

A lei também não autoriza a esterilização cirúrgica em mulher durante os períodos de parto ou aborto, o que pode configurar violência obstétrica.  

Consentimento do parceiro(a) é necessário? 

Outra previsão da lei é a necessidade do consentimento do parceiro(a) em casos, conforme a legislação, de sociedade conjugal. “Isso significa que, se for casado, um precisa da outorga do outro. o homem precisa da autorização da mulher, e a mulher precisa da autorização do homem”, explica a advogada. 

No caso de mulheres solteiras, o único consentimento é o da própria mulher, o que pode ser solicitado é uma declaração informando o estado civil e um termo de testemunha. Para as que são divorciadas, basta a averbação do divórcio.  

Porém, o artigo tem sido tema de discussão e, em março deste ano, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 7364/14 que prevê alterações na lei de 1996. Uma das mudanças é a exclusão da necessidade de consentimento dos cônjuges.  

Para a advogada, essa é uma grande conquista do direito brasileiro, por causa do histórico de machismo estrutural dentro das relações conjugais. “É muito relevante que a gente tenha esse avanço, porque é um poder do homem sobre o corpo da mulher, mas ainda temos muito a percorrer”, destaca.  

“As pesquisas mostram que há um índice muito grande de violência doméstica, principalmente com relação ao planejamento familiar. A mulher não quer mais ter filhos e o marido, pra prender ela no relacionamento, acabava provocando a gravidez sem ela querer”.  
Thaynara Nazaro
advogada

Como solicitar o procedimento de laqueadura?  

O primeiro passo para quem deseja realizar o procedimento é manifestar o interesse para um médico ginecologista, no caso de atendimento pelo plano de saúde, e também preencher um termo conhecido na lei como “Manifestação da vontade” que deve ser escrito e ter firma reconhecida em cartório.  

Em seguida, é preciso solicitar autorização do plano de saúde, já que se trata de uma cirurgia. Deve ser respeitado um prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico. 

No caso do SUS, é preciso ir ao posto de saúde do bairro com os documentos (comprovante de que tem dois filhos ou mais – caso esse seja o critério -, identidade, cartão do SUS e os termos de consentimento) e manifestar o desejo. 

Em seguida, a paciente deve ser encaminhada para reuniões de planejamento familiar para conhecer todos os métodos contraceptivos e, depois, tem de aguardar o prazo de 60 dias.  

Thaynara pontua que o médico ou a instituição não podem se negar a fazer o procedimento e, no caso da saúde suplementar, a paciente pode fazer uma reclamação ao Conselho do profissional ou uma denúncia na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) que vai fazer uma apuração.  

Em caso de negativa pelo SUS, a advogada recomenda fazer uma representação no Ministério Público ou na Defensoria Pública, que podem apurar porque o sistema não está encaminhando essas pessoas.  

"Se passar por todos os processos administrativos e ainda não der certo, ela pode entrar com um processo judicial pra garantir a realização do procedimento. Se for algo mais simples, pode tentar com a própria gerência do hospital ou a diretoria pra explicar como funciona, levar a lei, porque é um direito certo e líquido, não há o que se questionar”, esclarece. 

O que é a laqueadura?  

O médico ginecologista e obstetra, Santino Alves, explica que a laqueadura tubária é um método anticoncepcional permanente.  

“Consiste em um procedimento cirúrgico em que ocorre remoção de parte da trompa impedindo que a gestação ocorra, sendo assim as tubas que levariam os óvulos ao útero, agora bloqueadas, não permitem o encontro do óvulo com o esperma masculino, impedindo assim a fertilização do óvulo”. 
Santino Alves
ginecologista

Como é feito o procedimento? 

A laqueadura pode ser feita de três formas distintas: por por videolaparoscopia (padrão ouro), por via vaginal e por via abdominal (por laparotomia).  

“A via laparoscópica é a mais escolhida, visto a recuperação precoce, menor risco de infecção e sangramento, além disso não há grandes cortes”, explica o médico.   

Qual é a eficácia?   

De acordo com Santino, o procedimento é um dos métodos mais eficazes que existem, com uma taxa de falha em torno de 0,6 a 0,8 gestações por 100 mulheres. Chegando a uma eficácia de até 99,5%

É passível de reversão? 

“É, sim, com taxas de sucesso em torno de 50% para gestações intraútero. Essa taxa se iguala em alguns casos e pode até ultrapassar, ao sucesso da fertilização in vitro, que diferentemente da recanalização tubária, tem seu sucesso diretamente ligado a idade feminina”.  

Por isso, o médico destaca que o procedimento é idealmente feito por videolaparoscopia e depende de alguns fatores, como: aderências e cirurgias prévias, a forma como foi realizada a laqueadura e qual parte da trompa foi removida. “Em casos de remoção das trompas (uni ou bilateral) não pode ser tentada a recanalização na ausência do órgão”.