Ponta da cadeia de distribuição e de fácil substituição. Assim são consideradas pelas autoridades as mulas do tráfico de drogas. No Ceará, conforme a Polícia Federal, a atuação acontece principalmente no Aeroporto Internacional de Fortaleza. Ficam com as mulas a responsabilidade de fazer o "corre", transportar e entregar encomendas de ilícitos.
No ano passado 2022, a PF flagrou 12 'mulas' no Ceará. Já neste ano de 2023, foram três: um casal de bolivianos que estava com drogas amarradas na cintura e uma mulher que tentava levar quatro quilos de cocaína de Fortaleza até Dubai.
Em determinados casos, os suspeitos sequer sabem o que levam. Quando sabem que transportam ilícitos, optam por correr o risco de um flagrante. São contratadas por chefes de grupos criminosos e o pagamento varia conforme a dificuldade do serviço, podendo se resumir a uma oferta de R$ 100 ou até R$ 20 mil (como no caso mais recente, tendo como Dubai o destino final).
O delegado Alan Robson Alexandrino, chefe da DRPJ (Delegacia Regional de Polícia Judiciária) destaca que as lideranças do tráfico têm predileção por contratar pessoas de baixa renda: "muitas dessas pessoas crescem os olhos, enxergam oportunidade de ganhar dinheiro que não ganhariam durante anos. A gente precisa ressaltar que é tráfico, é entrar para o tráfico e um dos crimes mais graves da legislação brasileira".
"O caso da mulher rumo a Dubai, por exemplo, a suspeita era manaura e estava claramente produzida, foi montada com roupas de luxo para não gerar a desconfiança"
A depender do entendimento judiciário, casos de 'mulas' são tratados como tráfico de drogas privilegiado. Se comprovado que não há associação criminosa para o cometimento do crime, a pena tende a reduzir consideravelmente. A reportagem do Diário do Nordeste levantou dois casos recentes de redução de penas na Justiça do Ceará, nas quais os réus "feitos de mulas" acabaram em liberdade.
APREENSÃO MILIONÁRIA
Em 2021, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) e a Polícia Militar (PM) apreenderam 118 quilos de pasta base de cocaína, no quilômetro 7 da CE-040, Avenida Washington Soares. A droga avaliada em R$ 14 milhões estava dentro de um caminhão. Três pessoas foram presas em flagrante: Antônio de Jesus Sousa (o caminhoneiro) e Edivânia Silva de Andrade e Thales Lima da Silva (que estavam em um carro de apoio ao transporte).
Na última quarta-feira (1º), quase dois anos após o caso, o Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) reconheceu o tráfico de drogas privilegiado e diminuiu a pena de quase sete anos, para dois anos e cinco meses de reclusão. Devido à pena fixada ser inferior a quatro anos e os apelantes primários, são beneficiados a cumprirem em regime aberto, substituindo a prisão por pena restritiva de direito.
O advogado do motorista do caminhão, Taian Lima, considerou "brilhante a decisão da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Ceará".
"Demonstramos no Recurso de Apelação de forma inequívoca que nosso cliente, o motorista do caminhão, ostenta todos os requisitos para a benesse: agente primário; de bons antecedentes; não se dedica a atividades criminosas; não integra organização criminosa", disse o advogado.
As defesas dos réus ainda tentaram a absolvição alegando inexistirem nos autos provas suficientes para a condenação.
O CASO
A investigação e a denúncia sobre o caso ajudaram a apontar a existência do tráfico de drogas privilegiado. A Polícia recebeu denúncia anônima indicando que o caminhão transportava um alto carregamento de drogas e que um Pálio branco dava apoio, na função de 'batedor'.
"Diante das informações os policiais que transitavam na Av. Washington Soares, pararam o seu veículo, a fim de aguardar a passagem dos veículos mencionados. Após alguns minutos, avistaram os referidos veículos, primeiro o veículo Pálio, e dando ordem de parada, o mesmo empreendeu fuga. Logo atrás encontrava-se o referido caminhão, cujo motorista, o réu Antônio de Jesus Sousa, também tentou não obedecer a ordem de parada, mas não conseguiu, parando e identificando-se".
Instantes depois o Pálio também era interceptado e Thales e Edivânia flagrados. Foi preciso uma busca minuciosa no caminhão, até que os agentes encontraram um piso falso escondendo 115 tabletes de cocaína.
"Em juízo, Antônio de Jesus afirmou que a mercadoria seria entregue no Porto do Pecém, contudo que não sabia para quem iria entregá-la e que quem lhe contratou para realizar o transporte forneceu o número do depoente para um homem que receberia a mercadoria. Entretanto, observa-se que o flagrante foi realizado na Avenida Washington Soares, em Fortaleza/CE, portanto o cotado recorrente já havia passado, e muito, do local indicado em juízo para entrega da mercadoria".
Para a Justiça, as versões desconexas acerca do destino do transporte não deixaram dúvida que os acusados tinham conhecimento da existência de uma mercadoria ilícita, mas não restou comprovado o vínculo deles a uma associação criminosa.
DROGA INTERCEPTADA
A participação de 'mulas' no Ceará é observada há anos. Outro caso acompanhado pela reportagem foi o que envolveu Samya Santiago de Lima, Eduarda Sousa de Paula e Lucas Carvalho Viana de Sousa.
Em 2019, Samya subiu na garupa da moto de Eduarda, carregando nas costas uma mochila com três quilos de maconha. A missão era relativamente simples: transportá-la a um posto de combustíveis na BR-222, em Maracanaú, e trocá-la pela bolsa com R$ 2 mil levada até lá por Lucas Carvalho Viana de Sousa.
A transação das três 'mulas' foi frustrada por uma ação da Divisão de Combate ao Tráfico de Drogas (DCTD), da Polícia Civil do Ceará.
Samya e Eduarda comentaram, em depoimento, que receberiam R$ 300 pelo serviço. Já Lucas disse ter recebido R$ 100 para fazer a entrega de uma mochila.
Lucas disse aos investigadores que: "um homem foi até a sua casa e entregou a mochila a qual deveria ser entregue a duas meninas que chegariam ao 'posto dos caminhoneiros' em uma motocicleta de cor vermelha" e que ele sequer sabia o que estava fazendo.
"Que trabalhava como mototaxista na moto do avô e recebeu uma corrida para entregar uma mochila no posto, que não chegou a trocar a mochila, quando chegou lá foi abordado; que não abriu a mochila; que foi contratado por um rapaz que foi até a sua residência, que lhe ofereceu cem reais, que não sabe o nome dele; que acha que na mochila estava o dinheiro e não chegou a ver o que tinha na outra mochila; que no posto recebeu pisoes e coronhadas; que não sabia que ia voltar com outra mochila; que não conhece a Samya, que não falou com ela e não combinou nada com ela”.
Eduarda e Samya também negaram que tinham conhecimento sobre a traficância de drogas. Elas moravam juntas e, conforme Eduarda, foi a amiga quem a chamou para fazer um "corre" porque precisava de dinheiro: "fiz de tudo isso para ajudar a minha amiga, que está passando por dificuldades financeiras".
"Estava precisando de dinheiro para pagar o aluguel e uma pessoa conhecido por caroço que conheceu num grupo de WhatsApp perguntou porque ela estava triste e propôs ela fazer e ela aceitou, que tudo foi por WhatsApp, que não chegou a saber o valor que ia ganhar, que é um homem; que não perguntou o que era, mas ele disse que ela pegaria umas coisas para ele com uma mulher no terminal de Messejana, que essa mulher lhe ligou, que não conhece essa mulher, que pegou a bolsa e foi ao posto para entregar a bolsa para outra mulher; que pediu a moto do vizinho e chamou a Eduarda e não sabiam o que era".
Eduarda disse que quando os policiais surgiram ela " sabia que era algo de errado, mas não sabia exatamente o que era".
CONDENAÇÃO
O processo tramitou no Judiciário, até que em 5 de fevereiro de 2020 a 3ª Vara Criminal da Comarca de Maracanaú decidiu pela condenação do trio. Samya foi sentenciada a cumprir cinco anos de reclusão, enquanto Lucas e Eduarda a cinco anos.
Na época, o juiz alegou que as versões dos acusados eram contraditórias em muitos pontos, além de não conseguirem comprovar as teorias apresentadas: "tudo isso leva a crer que eles sabiam exatamente o que estavam cometendo, identificando, assim, o dolo em suas condutas".
"Pelo que consta, com os acusados, 2294 gramas de maconha (quatro barras e meia) e R$ 2.008,10 em moeda nacional. Toda essa quantidade de substância entorpecente e dinheiro é considerável, garantindo retorno financeiro aos acusados"
Recentemente as penas foram reduzidas. No dia 31 de janeiro de 2023, o gabinete do desembargador Henrique Jorge Holanda Silveira anexou aos autos a ementa revendo a pena de cada um dos acusados para um ano e oito meses, em liberdade.
DENÚNCIAS
O delegado federal Alan Robson destaca a importância da população denunciar, caso note situações suspeitas. O investigador destaca que há casos as próprias famílias ou amigos das 'mulas do tráfico' percebem a ilegalidade.
"A gente já recebeu denúncias da própria família, de amigos, dizendo que uma pessoa conhecida está viajando muito, que suspeitam de situações estranhas. A população colabora com a Polícia e é nossa obrigação sempre identificar quem está por trás do esquema", disse o policial.