Fortaleza registra média de 56 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes por mês

Em 2020, até agosto, 450 ocorrências foram contabilizadas nas delegacias especializadas e no Juizado da Infância. Número é cerca de 10% da realidade

Menina de 13 anos grávida após dois anos sendo estuprada pelo padrasto, em Fortaleza. Menina de 14 anos grávida após ser estuprada pelo namorado da mãe, em Mulungu. Menino de 7 anos estuprado por um conhecido da família, em Icó. Onze - e contando - crianças e adolescentes estuprados pelo mesmo homem, que tem parentesco com pelo menos nove delas, em Banabuiú. Todos no Ceará, todos em 2020.

De janeiro a agosto deste ano, foram registrados, só em Fortaleza, 450 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes, de acordo com a Fundação da Criança e da Família Cidadã (Funci), órgão municipal. São cerca de 56 por mês. Em 2019 inteiro, foram 718. Essas ocorrências que chegam às Delegacias da Criança e do Adolescente (DCA), de Combate à Exploração (Dceca) e ao Juizado da Infância, porém, representam apenas 10% da realidade: a estimativa é de que mais de 18 meninas e meninos sejam violentados por dia, na Capital. Podem ser 562 por mês.

A maior parte dos casos, segundo a Funci, ocorre na Regional V, que compreende bairros como Bom Jardim e Conjunto Ceará. Em seguida, vem a Regional VI, de bairros como Messejana, Jangurussu e Alto da Balança - onde o padrasto de uma das vítimas já descritas aqui sofreu uma tentativa de linchamento, após a descoberta da gravidez da adolescente.

Em todo o Ceará, até abril deste ano, 418 crianças e adolescentes haviam chegado aos registros da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) como vítimas de crimes sexuais. Os dados foram mostrados em maio por reportagem do Diário do Nordeste. As estatísticas atualizadas não foram repassadas pela SSPDS à reportagem até o fechamento desta edição. Pedimos também entrevista com representante da Dceca, mas a solicitação não foi atendida.

Proximidade

A barbárie que invade os corpos e mentes em formação, por outro lado, não se omite. É cometida nas mais diversas formas e cenários, mas segue padrões: em geral, o agressor tem parentesco com a vítima, confiança dos familiares e consegue manter os abusos por longos períodos. Até ser flagrado, como aconteceu em Icó. Ou até a adolescente violentada engravidar, como em dois casos recentes no Ceará.

Até julho de 2020, aliás, 46 meninas de 10 a 14 anos de idade passaram por aborto, seja espontâneo, seja por razões médicas, segundo o Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS).

"Agressor e vítima têm, em geral, uma relação de poder, sendo ele pai, padrasto ou alguém conhecido. Existe uma relação intrafamiliar ou de confiança, e em algumas famílias a criança não encontra uma rede de proteção. A maioria das vítimas são meninas, e quando falamos de trabalhar sexualidade e autodefesa é para que elas tenham força para romper o ciclo da violência", analisa Marina Araújo, coordenadora do Núcleo de Atendimento do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca).

A culpabilização da vítima, segundo Marina, é um dos fatores que contribuem para a subnotificação dos casos - que deve aumentar diante do isolamento social imposto pela pandemia. "No acolhimento, temos que acreditar na versão da criança ou do adolescente. Pais ou pessoas de confiança devem ouvir e acolher a vítima sem culpabilizá-la. É muito importante que a denúncia seja feita para que, a partir daí, a violência seja cessada. Com a pandemia, o acesso aos órgãos ficou mais restrito, agravando o problema".

Outra barreira é a dificuldade das famílias e das escolas na lida com o tema sexualidade, como aponta Kelly Meneses, coordenadora do Programa Rede Aquarela, da Funci. "A informação não chega até as crianças e adolescentes. Quando percebem, eles já estão sendo vítimas de violência há anos. E a sociedade ainda duvida muito da palavra da criança: mas 92% delas estão falando a verdade, quando denunciam. E o restante mentiu por obrigação de um adulto", estima.

A Rede Aquarela, que articula e executa a Política Municipal de Enfrentamento à Violência Sexual Infantojuvenil, possui equipes de atendimento na Dceca, em serviços de acompanhamento psicossocial e nos órgãos do Judiciário, a fim de abarcar a assistência à vítima em todas as fases após a denúncia, como explica Kelly. Além disso, o programa atua na prevenção aos crimes sexuais infantojuvenis, capacitando profissionais da educação, da saúde e os próprios familiares para perceberem os sinais de abuso nas vítimas.

Sinais

Escoriações, infecções urinárias, sono perturbado e mudanças de comportamento são alguns deles, como alerta Luciana Quixadá, doutora em Educação e professora do curso de Psicologia da Universidade Estadual do Ceará (Uece). "Existem indicadores que, se associados, e não isolados, devem ser alertas. Há os físicos, como controle dos esfíncteres, roupas rasgadas ou com manchas de sangue e hemorragias; e os comportamentais, como baixa autoestima, medo de ficar sozinha com alguém e timidez excessiva", lista. No caso de adolescentes, observa a psicóloga, o desenvolvimento de depressão, envolvimento com drogas e até ideação ou tentativas de suicídio também são frequentes.

Para Luciana, a escola tem papel fundamental na prevenção e na identificação desses casos, mas é necessária uma mudança na estrutura social para se alcançar a raiz do problema. "Precisamos reconhecer crianças e adolescentes como sujeitos de direito. O adulto se coloca como tendo poder sobre eles, subjugando os desejos aos seus próprios, e isso causa também as violências, não só sexuais. Isso ocorre principalmente entre meninas negras e pobres. Existe um ponto de intersecção entre raça, classe e gênero", destaca, apontando a urgência de uma rede de proteção efetiva.

Marina Araújo, do Cedeca, reforça que "o poder público precisa se comprometer com um plano de enfrentamento de verdade", e que somente a Rede Aquarela, por exemplo, não é suficiente para o universo de Fortaleza.

Socorro França, titular da Secretaria da Proteção Social do Ceará (SPS), reforça que o Estado atua no acolhimento psicossocial de crianças e adolescentes por meio dos 113 Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas) municipais e dois Regionais. "A gente sente que há uma subnotificação muito forte. Muitas vezes, a mãe sabe que o filho ou a filha é abusada, mas como a única renda é de alguém que vive com eles, não notifica", observa.

Segundo a secretária, assim como a Funci, a SPS também busca a capacitação de servidores técnicos da assistência social, da educação e da saúde para identificar sinais de abuso no comportamento infantil. Ela afirma que, em breve, será firmada uma cooperação técnica com o Governo Federal para que denúncias do tipo informadas aos Disque 100 e Disque 180 sejam recebidas também pela Secretaria, para posterior encaminhamento e monitoramento.