Onze mulheres trans ou travestis foram mortas por causa do ódio à diversidade, o transfeminicídio, em 2021, no Ceará. Este é o maior número de assassinatos do tipo entre cinco estados monitorados pela Rede de Observatórios da Violência com dados divulgados nesta quinta-feira (10).
A violência contra esse público também tirou a vida de 10 pessoas em Pernambuco. Em São Paulo, foram cinco e uma no Rio de Janeiro. A Bahia foi o único estado monitorado sem registro deste tipo de crime.
Os dados da Rede de Observatórios, obtidos pelo Diário do Nordeste, são organizados por meio de um monitoramento independente dos pesquisadores com base nas informações oficiais e casos veiculados na imprensa.
No Ceará, as dores causadas por transfeminicídios se acumulam no segundo ano seguido em que o Estado aparece como o mais violento para mulheres trans e travestis. Em 2020, 13 pessoas transexuais foram assassinadas no Ceará devido à identidade de gênero.
A cearense Keron Ravach, morta aos 13 anos, inclusive, foi a vítima mais jovem de transfobia registrada no Brasil, como apontam os pesquisadores. O assassinato aconteceu com pauladas, chutes e socos em Camocim. A menina foi encontrada em um terreno baldio.
“O mais emblemático que precisa ser dito é que essa violência transfóbica tem chegado às pessoas cada vez mais cedo”, analisa sobre o caso Ana Letícia Lins, socióloga e pesquisadora da Rede.
Um adolescente de 17 anos foi apreendido por ser o suspeito do ato infração, como informou a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS). “As investigações foram conduzidas pela Delegacia Regional de Polícia Civil. O caso foi concluído e remetido ao Poder Judiciário”, destacou em nota.
Apesar de o Ceará já ter liderado o numero de assassinatos de pessoas trans, os pesquisadores não esperavam que em 2021 o cenário se repetisse. “Mas mais uma vez o Ceará se coloca nesse lugar muito perigoso”, avalia Ana Letícia.
Entender o significado de transfeminicídio exige a compreensão sobre o feminicídio com a inferiorização e violência contra mulheres no contexto do machismo, como explica Dediane Souza, travesti e pesquisadora no tema da travestilidade.
"É importante a gente pensar que o ambiente comunitário, familiar, a vizinhança são espaços onde nós, travestis e mulheres transexuais, mais vamos sofrer as violências cotidianas”, observa.
Ao aprofundar sobre a situação dessas pessoas, os fatores econômicos e raciais são determinantes para entender as formas de agressões. “A gente vai perceber que as travestis negras, pobres e moradoras das periferias são mais vulneráveis a essas violências”, acrescenta.
A gente vive num país onde o racismo e o machismo são estruturais. Então, a negação desses corpos pretos, travestis, que de alguma forma romperam com uma lógica ocidental de gênero, passam a ser penalizadas através da violência e do extermínio dos seus corpos
Negação do direito à vida
É comum em trajetórias de transexuais e travestis a exclusão familiar, a baixa escolaridade, o desemprego e a falta de acesso aos serviços de saúde, como contextualiza Dediane Souza, que também é diretora da Rede Trans Brasil. Mudar isso depende de oportunidades.
"São questões que a gente precisa discutir para construir espaços que acolham essas identidades, nos reconheçam como sujeitos de direitos, como humanos, pertencentes à sociedade", defende.
Analisar os padrões desses crimes pode ser um dos caminhos para estabelecer políticas públicas para alterar o cenário de violência. "Quando a gente fala na travestilidade e na transexualidade, especialmente as de cor, esses sujeitos parecem que precisam de uma permissão para ter o direito de viver”.
A socióloga Ana Letícia Lins ressalta a necessidade de ampliação dos Centros de Referência para acolhimento.
“O sistema, como um todo, não está preparado para lidar com esse tipo de crime. Nós chamamos atenção, no relatório, a questão de usarem a LGBTQIA+ como linha de investigação”
Isso porque a especialista observa, na atuação da polícia, critérios como se a vítima tinha relação com a criminalidade, mas falha quanto à identidade. “Quando se observa de perto é visto o desprezo grande por quem a pessoa é”, conclui.
A Secretaria da Segurança, em resposta à reportagem, informou que o Sistema de Informações Policiais (SIP3W), utilizado pela Polícia Civil para o registro de ocorrências, mantém campos referentes à orientação sexual e identidade de gênero.
“A adequação dos campos permite identificar crimes de LGBTfobia, bem como coletar dados estatísticos relacionados à comunidade LGBTQIA+”, detalhou.
A SSPDS destaca a parceria com representantes de movimentos sociais para a criação do “Observatório Cearense dos Crimes Correlatos por LGBTQIAPNfobias”, em fevereiro.
Outras ações coletivas acontecem com Batalhão de Policiamento de Prevenção Especializada (BPEsp), da Polícia Militar, com o Centro Estadual de Referência LGBT+ Thina Rodrigues, além do Centro de Referência LGBT Janaína Dutra, da Prefeitura de Fortaleza.