Apontando para a reta final e com relatório previsto para ser apresentado às autoridades ainda em outubro, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19 revelou, nos últimos seis meses, meandros da República que, segundo os senadores, poderão resultar em indiciamentos e ao menos 11 possíveis crimes de responsabilidade durante o combate à pandemia no Brasil.
A lista, de acordo com o o relator Renan Calheiros (MDB-AL), inclui crimes de responsabilidade, crimes contra a saúde pública e mesmo crimes contra a humanidade, além de condutas previstas no Código Penal.
O relatório final de uma CPI não propõe acusações diretas à Justiça, mas sim, indiciamentos. O trâmite é similar ao de um inquérito policial – as conclusões da investigação são enviadas ao Ministério Público, que analisa e decide se apresenta denúncia formal ao Judiciário.
No caso de Jair Bolsonaro, esse indiciamento precisa ser apresentado à Procuradoria-Geral da República (PGR) – que, pela Constituição, tem a prerrogativa de protocolar ações penais contra o presidente.
Segundo Calheiros, outras instâncias do Ministério Público também receberão o relatório final.
Lançando luz aos possíveis desfechos dessa que foi uma das mais importantes comissões no Congresso Nacional ao longo da história, e que apura a conduta de ministros, secretários e até do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) durante a pandemia, o Diário do Nordeste separou 10 relevalações polêmicas da CPI que foram destaque no noticiário político.
1 - Pfizer ignorada
A demora na compra da vacina americana Pfizer foi um dos temas mais explorados na comissão. O caso ganhou corpo no depoimento do ex-secretário de Comunicação do governo Fabio Wajngarten, que citou uma carta de 12 de setembro ao presidente Jair Bolsonaro, a seu vice, Hamilton Mourão, aos então ministros Paulo Guedes (Economia), Eduardo Pazuello (Saúde), Walter Braga Netto (Casa Civil) e ao embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Nestor Forster.
A carta foi ignorada por dois meses, afirmou Wajngarten — dizendo ainda que, quando tomou conhecimento do assunto, em novembro, entrou em contato com a farmacêutica e se reuniu uma vez com o executivo da empresa no Brasil, Carlos Murillo.
2 - US$ 1 por dose
Em junho, o jornal Folha de S. Paulo publicou que um suposto vendendor de vacinas, o ex-Polícia Militar Luiz Paulo Dominghetti, que seria representante da empresa norte-americana Davati Medical Suply, havia acusado um diretor do Ministério da Saúde de ter cobrado 1 dólar por dose de vacina da AstraZeneca.
A suposta negociação - que foi motivo de um dos primeiros embates na Comissão -, produziria o montante de US$ 400 milhões em propina. O Diretor de Logístiica do Ministério da Saúde, Roberto Ferreira Dias, foi demitido no mesmo dia da publicação.
3 - Tentativa de mudar a bula da cloroquina
Os medicadimentos cloroquina e hidroxicloroquina foram constantemente sugeridos pelo presidente Bolsonaro e por ações oficiais do Ministério da Saúde desde o início da pandemia. O chamado "tratamento precoce" ainda é atualmente defendido por apoiadores do presidente.
Durante as tradicionais lives de quinta-feira, Bolsonaro repetiu que fazia uso da cloroquina após sentir sintomas de Covid-19: "Não vou falar o nome (do remédio) para não cair a live", disse o presidente e uma das ocasições.
Em seu depoimento à comissão, em 4 de maio, o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta afirmou que durante sua gestão ele foi chamado a uma reunião em que "havia sobre a mesa um papel não timbrado de um decreto presidencial para que fosse sugerido que se mudasse a bula da cloroquina na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), colocando na bula a indicação da cloroquina para coronavírus. E foi inclusive o próprio presidente da Anvisa, (Antônio) Barra Torres, que disse não".
4 - Suspeita de "gabinete paralelo"
Senadores críticos ao governo empretaram a tese de que Jair Bolsonaro recebia um "aconselhamento paralelo" ao Ministério da Saúde no que se referiu à estratégia de enfrentamento da pandemia, principalmente no início.
As iniciativas de defesa da cloroquina e a ideia de imunidade de rebanho por contaminação teriam saída exatamente desse aconselhamento.
Embora o Ministério da Saúde nunca tenha oficialmente se utilizado da estratégia de imunidade de rebanho sem vacinas, Bolsonaro disse diversas vezes que a contaminação da maioria da população era inevitável.
O presidente costumava repetir que "o vírus vai atingir 70% da população, infelizmente é uma realidade".
Um dos expoentes da tese é a médica Nise Yamaguchi, que depôs na CPI, e foi apontada por senadores de oposição como uma das "conselheiras" do presidente. Ela teria, inclusive, incentivado as supostas tentativas de mudar a bula da cloroquina.
5 - Prevent Senior
O plano de saúde Prevent Senior foi acusado de ocultar mortes de pacientes que participaram de um estudo realizado para testar a eficácia da hidroxicloroquina, associada à azitromicina, para tratar a Covid-19.
Ainda em agosto, a CPI da Covid recebeu denúncias de irregularidades, elaborado por médicos e ex-médicos do plano. De acordo com o dossiê apresentado, a disseminação da cloroquina e outras medicações foi resultado de um acordo entre o governo Bolsonaro e a Prevent que gerou o estudo.
Os médicos que fizeram a denúncia alegam que eram coagidos pela Prevent a prescrever as medicações do tratamento precoce, e que há um acompanhamento rigoroso do número de kits prescritos. Eles também eram orientados a trabalhar com Covid e sem máscaras.
6 - Irmãos Miranda
O deputado federal Luis Miranda (DEM-DF) afirmou que foi procurado por seu irmão, Luis Ricardo Fernandes Miranda, que é chefe da divisão de importação do Ministério da Saúde e que estaria sofrendo pressão para fechar a compra da vacina Covaxin.
Segundo Luis Ricardo, houve uma pressão “incomum” durante o processo de adequação de documentos para a compra da vacina indiana, o que fez com que ele suspeitasse da operação.
Os dois teriam ido conversar com o presidente Jair Bolsonaro no dia 20 de março. Durante a CPI, Luis Miranda disse acreditar que Bolsonaro já sabia da possível fraude antes mesmo de ser avisado por ele e por seu irmão. Segundo o deputado, Bolsonaro disse que a compra do imunizante seria “rolo de um deputado”.
A indicação da oposição é de que Bolsonaro teria prevaricado no caso.
7 - Luciano Hang
O depoimento do empresário bolsonarista Luciano Hang, dono da rede de lojas Havan, foi marcado por momentos de tensão e interrupções. Hang também é um dos apoiadores do governo apontado como defensor do tratamento precoce contra a Covid-19.
Um dos destaques, revelado na semana do seu depoimento, é de que a certidão de óbito de sua mãe, que faleceu em decorrência da Covid, teria sido adulterada.
Aos senadores, Luciano Hang disse que, ao saber que a Covid não constava do atestado de óbito da mãe, procurou a Prevent Senior. De acordo com o empresário, a operadora de saúde forneceu um segundo documento. Segundo ele, esse segundo documento, sim, mencionava a Covid.
Ainda no depoimento, Hang disse que a mãe foi diagnosticada com Covid no dia 28 de dezembro de 2020. Segundo ele, médicos foram chamados e começaram a medicá-la com remédios que compõem o chamado "kit Covid".
8 - Crise em Manaus
Nos primeiros dias do ano, quando o Amazonas vivia um colapso do sistema de saúde e a iminente falta de oxigênio devido à explosão de casos de Covid-19, a prefeitura de Manaus e o governo estadual solicitaram ao Ministério da Saúde envio de medicamentos ineficazes para tratamento da doença, como cloroquina, azitromicina e ivermectina.
Isso é que mostram documentos requisitados pela CPI da Covid às secretarias municipal e estadual de saúde.
O assunto esteve presente no depoimento do ex-secretário de Saúde do Amazonas Marcellus Campêlo. Ele disse que a secretária do Ministério da Saúde Mayra Pinheiro, em visita a Manaus dias antes do colapso na cidade, deu ênfase ao tratamento com drogas sem eficácia para a Covid.
Também em depoimento na comissão, Mayra admitiu que o Ministério da Saúde recomendou o uso da cloroquina contra a Covid, remédio comprovadamente ineficaz contra a doença.
9 - Recusa das vacinas
O diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, relatou à CPI ao menos três tentativas de oferta da vacina CoronaVac, desenvolvida em parceria com o laboratório chinês Sinovac, ao governo brasileiro antes de o contrato ter sido firmado, em janeiro de 2021.
De acordo com Covas, o primeiro contato do instituto com o Ministério da Saúde se deu em julho de 2020, com novas tentativas até janeiro. Em meio às negociações, o presidente Jair Bolsonaro fez críticas ao imunizante e chegou a afirmar que não iria comprar a “vacina chinesa”.
Covas disse ainda que após declarações contrárias à vacina, houve prejuízos na busca por voluntários, dificuldade na aquisição de matéria-prima para o imunizante e ataques contra o instituto oriundos das redes sociais. Segundo ele, se não houvesse o atraso, o Brasil poderia ter sido o primeiro país do mundo a iniciar a vacinação.
10 - Pazuello
O depoimento do general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, foi um dos mais longos e durou dois dias.
Na avaliação do relator, Renan Calheiros, Pazuello "mentiu muito" ao longo do depoimento. O general, por sua vez, negou que tenha faltado com a verdade.
Em entrevista coletiva após o depoimento, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AM) afirmou que Pazuello foi à CPI com intuito de "proteger" Bolsonaro.
Pazuello também foi confrontado por sua fala anterior na CPI, quando disse que nunca indicou cloroquina e tratamento precoce em Manaus, mas defendeu "liberdade dos médicos".
Senadores de oposição mencionaram que o Governo lançou em Manaus, em 11 de janeiro, um programa chamado TrateCov — um aplicativo desenvolvido para diagnóstico e indicação de tratamento de Covid.
O ex-ministro chegou a dizer que o programa foi "hackeado e lançado por um hacker". No entanto o TrateCov foi lançado oficialmente pelo Ministério da Saúde, inclusive com programa na TV Brasil para promoção do aplicativo.