O Vale do Javari e outros territórios indígenas da Amazônia foram campos de atuação do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, defensores de povos indígenas e comunidades tradicionais da região contra a violação de direitos provocados por atividades ilegais na floresta.
Foi também neste território onde eles acabaram sendo assassinados, em crime que mobiliza brasileiros e estrangeiros. Os riscos a defensores de direitos humanos, no entanto, ocorrem também em localidades bem mais próximas ao cotidiano dos cearenses.
Território. A palavra que alcança - e une - quem, na Amazônia ou no Ceará, dedica anos de vida à defesa dos direitos humanos, colocando-se inclusive em risco iminente.
Um desses casos está na comunidade do Cumbe, em Aracati, onde João ganhou o sobrenome extraoficial: "Do Cumbe" passou a fazer parte da identidade, assim como, ressalta, faz parte a própria defesa da comunidade quilombola.
"Eu só sei ser o João do Cumbe se tiver nesse território, se estiver fazendo essa defesa. Para existir eu preciso desse mangue, dessa duna, dessa camboa, dessa praia. É a minha identidade, é o meu jeito de viver no território".
São mais de duas décadas vivendo a luta pelo direito ao território onde fica localizada a Comunidade do Cumbe. Destas, mais de uma década são sob o guarda-chuva do programa de proteção a defensores dos direitos humanos. João do Cumbe foi incluído no sistema federal em 2009, quando o programa estadual ainda nem havia sido criado - o que viria a ocorrer apenas em 2012.
Ele é um dos 80 defensores e defensoras de direitos humanos com atuação no Ceará incluídos no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH), vinculado à Secretaria da Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS).
Contudo, ao contrário do que ocorre em outros programas de proteção - em que a retirada do território de ameaça é a prioridade -, o sistema de proteção a defensores prioriza a manutenção deles no território.
"O desafio é manter a pessoa no campo de atuação, exercendo a militância. E é lá que está o contexto de ameaça, o ameaçador. A estratégia é constituir a rede de proteção para que ele possa continuar atuando", explica a supervisora do Núcleo de Apoio aos Programas de Proteção da SPS, Rachel Saraiva Leão.
Como funciona o programa de proteção
Esta rede de proteção é construída a partir de um tripé, que sustenta o próprio funcionamento do programa de proteção. O Governo do Estado celebra termo de colaboração com o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos - que é responsável por parte dos recursos necessários para a execução do programa.
A execução, por sua vez, fica a cargo de organização da sociedade civil que tenha uma trajetória de atuação ligada à defesa dos direitos humanos. A escolha dessa entidade é feita por meio de chamamento público - o último ocorreu em 2021, e a celebração do termo de colaboração foi feita em julho do ano passado.
Até julho de 2024, a organização escolhida deve acompanhar todos os defensores e defensoras incluídos no programa e construir, junto a eles, "medidas protetivas que deem conta da atuação deles ainda no território", resume o coordenador-geral do Programa de Proteção.
A pedido dele, o Diário do Nordeste irá omitir a identificação tanto do coordenador como da entidade responsável pela execução do PPDDH por motivos de segurança de toda a equipe técnica responsável pelo acompanhamento de ativistas que vivem em situações de conflito no Ceará.
O risco para defensores e defensoras
A equipe técnica é formada, além da coordenação geral e adjunta, por assistentes sociais, psicólogos e advogados. A avaliação dos riscos envolvidos, a cada momento, na atuação dos defensores e a elaboração de medidas de proteção é parte rotineira da atuação destes profissionais.
"Todas as ameaças (a defensores) geram risco de morte. O que a gente precisa é mensurar qual o grau de risco o defensor está vivenciando. Como o defensor está no território, tem períodos em que a ameaça está mais iminente e outros em que está mais branda. A partir da avaliação da equipe, nós pensamos as medidas (de proteção)", explica o coordenador-geral.
O parlamentar - que tem desde o primeiro mandato como um dos eixos de atuação a defesa dos direitos humanos - ressalta a importância da existência do programa estadual de proteção a defensores, porque o momento pede que seja fortalecida a proteção, no entanto, existe uma desfinanciamento dessas ações.
Para o último convênio firmado pelo Governo Estadual, que tem vigência de 2021 a 2024, o repasse federal foi de pouco mais de 2,1 milhões - um percentual de 54,76% -, enquanto a contrapartida estadual ficou em cerca de 1,75 milhões - percentual equivalente a 45,24%.
O Ceará é um dos nove estados brasileiros que conta com o programa a nível estadual. Além dele, Minas Gerais, Bahia, Mato Grosso, Pará, Pernambuco, Paraíba, Rio de Janeiro e Maranhão também possuem a iniciativa no âmbito do estado. Roseno, no entanto, aponta a necessidade de ampliar o programa no Ceará.
"Temos mais gente sob ameaça do que capacidade de responder. Isso se deve porque o sistema precisa crescer e porque tem um aumento da escala da violência, sobretudo nos últimos 4 anos. O Governo Bolsonaro impulsiona a conflitualidade".
Rachel Saraiva Leão aponta que existe ainda uma preocupação com a "entrada no crime organizado no contexto do conflito envolvendo defensores", completa. "O que tínhamos antes, por exemplo, eram indígenas contra empreendimentos econômicos. Dificilmente tinha um conflito direto. (...) Quando temos o crime organizado presente nos territórios, a linguagem de resolução de conflitos é o homicídio", afirma.
Ela explica que esse crescimento foi observado a partir de 2017 - quando se tornou mais comum, por exemplo, a retirada dos defensores dos territórios de atuação. Entre 2012, ano de criação do programa, e 2017, isso não havia ocorrido nenhuma vez. "É uma medida de exceção, porque retirar o defensor do local de atuação é atender o desejo do ameaçador", finaliza.
História de quem luta
Neste momento, o PPDDH atende 38 casos de conflitos envolvendo defensores de direitos humanos - o que resulta em 80 pessoas incluídas no programa de proteção. Dentro destes casos, 43 defensores protegidos pelo programa atuam na defesa de direitos de povos e comunidades tradicionais - como indígenas, quilombolas e comunidades que envolvem, por exemplo, pescadores ou agricultores.
É o caso de João do Cumbe, de quem falamos no início desta reportagem. Quilombola e liderança deste Movimento, ele é também educador popular, ambientalista e liderança do movimento de pescadores artesanais. Uma trajetória na qual as ameaças de morte não são, infelizmente, uma novidade.
Ele participa, desde 1996, da defesa do território da Comunidade do Cumbe - comunidade quilombola, mas também de pescadores, como ele explica ao longo da entrevista. Ainda na década de 1990, a luta era contra empreendimentos de criação de camarão em cativeiro.
"Eles se instalaram em áreas de manguezais, causando conflitos como a privatização de uso comunitário, a contaminação do nosso rio e do nosso mangue. Essa atividade chega com o propósito de desmantelamento das nossas práticas tradicionais, instaurando um conflito interno dentro da comunidade", explica.
Ao longo destes mais de 20 anos, empreendimentos ligados a outras atividades econômicas também passaram a se instalar na região, o que acirrou os conflitos na região. Um contexto que teve em João uma das lideranças centrais na defesa do território.
"Por conta dessa militância, eu comecei a sofrer ameaças de morte. Pessoas externas (da comunidade) mostrando punhado de balas, perguntando se eu não tinha medo de levar um tiro ou de amanhecer com a boca cheia de formigas. Eu estudava em Aracati a noite (e diziam) que iam me pegar e me bater (nesse trajeto)".
O medo de andar pelo próprio território - "para andar, eu preciso estar avisando as pessoas", diz - convive com a certeza de que não é possível ser quem é sem a luta pela terra - sua, dos antepassados e daqueles que ainda estão por vir. "O que defendo é a minha existência, a existência da minha comunidade", ressalta.
Peso político e Rede de Proteção
São 13 anos como parte do programa de proteção a defensores dos direitos humanos - três deles ainda a nível federal. Da experiência, João do Cumbe destaca dois aspectos importantes na inclusão dentro da rede de proteção mantida pelo Poder Público. O primeiro deles é político, aponta o ativista. "Quando passa a existir a nível estadual, tem peso político. Para mostrar para os infratores que ninguém está sozinho", explica.
Roseno aponta que a própria inclusão no programa já tem essa força política, porque "quando a pessoa é reconhecida, já é um fortalecimento da demanda dela". Ele completa que existe a necessidade, inclusive, de uma maior relevância do Programa de Proteção dentro da administração pública.
"Precisa ter mais relevância institucional na estrutura de Estado, porque no limite está de fato salvando vidas. (...) Se tem que tirar alguém do território, tem que saber para quem ligar e quem atender tem que ser diligente. No caso do Bruno e Dom Phillips, houve a letargia das autoridades. Não pode haver letargia ou fraqueza na proteção, porque pode gerar situações de violência letal", cita o parlamentar.
A rede necessária para promover a proteção de um defensor em risco iminente no território também é citada por João do Cumbe como o segundo aspecto importante dentro do Programa de Proteção. "Uma equipe multidisciplinar, que não está ligada com o Estado, mas tem essa conexão para acionar a rede de proteção", relata.
"Se um dia, ‘deuso livre’, eu precisar de atendimento psicológico ou de saúde, vai ter a função de acionar essa rede que possa garantir a minha segurança e também dos que estão no território. Porque não é só o João, é a família. Tem outras pessoas que fazem parte dessa existência e luta".
Desafios para execução
Quem acompanha - até antes do início da atuação de programas de proteção no Estado - sabe que ainda existem desafios para conseguir não apenas a efetiva proteção desses defensores como a resolução do conflito.
Roseno diz que, por funcionar em um sistema de convênio com entidades da sociedade civil, existe uma preocupação com a demora nesses processos. É um risco de descontinuidade do atendimento, o que "às vezes, gera insegurança". "Deve haver uma solução entre um convênio e outro para não perder essa memória institucional", ressalta.
Rachel Saraiva Leão assegura que o intervalo entre os termos de colaboração assinados entre o governo e as organizações selecionadas é de, no máximo, três ou quatro meses. A descontinuidade, admite, está relacionada "ao modelo de execução da política", que é determinada pelo governo federal.
"A solução apresentada pelo Ministério é de fazer parcerias por um período de vigência maior. O último (convênio) foi celebrado no ano passado e termina em julho de 2024, tentando minimizar os efeitos da descontinuidade. Aqui no Estado, também buscamos alternativas para evitar os lapsos", ressalta.
A execução fica a cargo de uma entidade da sociedade civil que ocorre tanto por motivos burocráticos como políticos. Do ponto de vista de execução, a entidade tem maior liberdade para o uso dos recursos (com a devida prestação de contas), sem a necessidade de licitações, por exemplo. A celeridade, principalmente em situações com risco de morte para os defensores, é primordial nesses casos.
Além disso, o programa nasce pela demanda da sociedade civil para proteção de quem atua contra a violação de direitos humanos ocasionada, por vezes, por pessoas ligadas ao Poder Público. "Existe uma preocupação com as situações em que o ameaçador pertença ao Estado ou tenha bom trânsito entre atores do Estado", ressalta Saraiva.
"É uma contradição, porque o mesmo Estado que diz que me protege é o Estado que libera a atuação dentro dos nossos territórios. É a ausência do Estado, que não cumpre seu papel, que abre espaço para madeireiros, seringueiros de estarem nos territórios violando direitos dos povos e comunidades tradicionais", afirma João do Cumbe.
Papel de mediação
Não existe um período determinado para o defensor permanecer no programa de proteção. A saída é vinculada à resolução do conflito e, portanto, ao fim da ameaça. "A articulação vai para além da proteção, é para resolver (o conflito). A ameaça só vai deixar de existir para o defensor quando a solução vier, não apenas para ele, mas para a comunidade", ressalta o coordenador-geral do Programa de Proteção.
O programa funciona, assim, como uma forma de mediação entre a comunidade envolvida naquele conflito e o Poder Público. O desafio nestes casos passa a ser encontrar as medidas cabíveis tanto para a proteção do defensor como para tentar resolver as questões junto aos órgãos responsáveis.
"Para solucionar o problema, precisa a atuação do órgão público e, para isso, precisa ter essa articulação direta. Muitas vezes, o defensor não consegue sozinho encontrar com a Secretaria (por exemplo) e aí o programa entra com a função de mediador", ressalta.
Para o coordenador-geral do programa, existe dificuldades principalmente devido a uma "atuação limitada" dos órgãos, o que dificulta a resolução dos conflitos, além de uma demora na resolução de processos, como a demarcação dos territórios de povos tradicionais.
"Temos comunidades de defensores que dependem de um reconhecimento do território como quilombo, da terra indígena. Se essa titularidade não caminha, mais tempo vamos ter o defensor incluído no programa, porque está fazendo a defesa do seu território. Quanto mais tempo sem reconhecimento, a especulação não para e vai gerar risco para o território e para o defensor, que vai continuar no programa", ressalta.